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Jogo, acaso, crime: notas em torno de um puzzle

 

0. As minhas amigas Ana Cristina Joaquim e Roberta Ferraz propõem-me um desafio: escrever um pequeno ensaio sobre estes três conceitos – jogo, crime, acaso objectivo.

Antes de questionar a semântica destas palavras, observo a pragmática do convite, tão gentil, tão aberto a uma deriva experimental – um texto sobre três conceitos. Não três textos independentes, mas um, regido por princípios de coerência, coesão, unidade. Donde a questão inicial, ou prévia: porquê estes conceitos? Como dialoga cada um com os outros, e os três em conjunto? Ainda nem comecei (este é o ponto 0, átrio, bastidor), e já estou perante um puzzle sem manual de instruções, ou melhor: cujas instruções devo inventar à medida que jogo.

(Pode-se jogar assim? Ou vou contra as regras? Mas, precisamente – quais são as regras?)

 

1. Começo. Leio algumas linhas de Walter Benjamin, no último parágrafo de «Pequena história da fotografia»:

 

Não foi por acaso que se compararam as fotografias de Atget com as de um local do crime. Mas, não será cada canto das nossas cidades um local do crime? Não será cada um dos seus transeuntes um criminoso? E não será função do fotógrafo – sucessor dos áugures e dos arúspices – revelar a culpa nas suas fotografias e apontar a dedo os culpados? (1931: 261)

A esta sequência de interrogações não posso senão acrescentar outras: esta suspeita vale para todas as fotografias de Atget? Vale igualmente para uma rua deserta e povoada? Valeria para uma fotografia de uma paisagem rural? E, caso não valha, o que há no cenário urbano que faz suspeitar de crimes – reais, possíveis, latentes, subliminares?

Roland Barthes (1980) insistiu no facto de as fotografias terem uma relação indicial com o mundo: as imagens de Atget resultam da presença real de Paris, são um prolongamento físico de ruas, casas, montras, uma repercussão da luz que as iluminou. Mas nós conhecemos ruas, casas e montras no devir: a nossa experiência do mundo implica a submissão ao tempo e à metamorfose. Pelo contrário, a fotografia fixa o devir num instante (ignorarei o facto de as fotografias – e o observador – pertencerem também ao tempo, envelhecendo). Nesse sentido, basta cristalizar um instante do tempo para criar um monstro. (Ou para atravessar kronos: «se eu me concentrar num fragmento do tempo / não é hoje, nem amanhã / mas se eu me concentrar num fragmento do tempo, / agora, / esse fragmento revelará todo o tempo», escreve Maria Gabriela Llansol em O Livro das Comunidades (1977: 76), ecoando Eckhart…

Prestar atenção às coisas transfigura as coisas, retira-as do devir, suspende-as em interrogações: quem, o quê, quando, onde, como? Desloca-as do tempo cronológico para o tempo artificial da narrativa: porquê? Tal como o detective, que transforma o espaço neutro, marcando-o, explicando-o (ex-plicar: desdobrar o dobrado, abrir espaços no espaço).

Trata-se de uma metamorfose do observador: a fotografia obriga-nos a ver um crime; adivinhar, detectar, reconstruir, sondar; delirar, alucinar, sobrepor; ou ainda: super-ver, sobre-ver, mais-que-ver. A fotografia não se dirige simplesmente aos olhos, não é retiniana. Tal como o áugure e o arúspice não precisam tanto de ver quanto de projectar no visto o que já sabem, mas ignoram que sabem.

E por que razão projectamos um crime – em desproveito de outras narrativas possíveis? Talvez porque um crime subjaza a qualquer cidade, e nós ignoramos que o sabemos? Em cada imagem da cidade, Rómulo mata Remo. Ler a imagem é um acto político.

 

Eugène Atget, «Rue Hautefeuille, Paris» (1898)

 

2. Segunda citação. André Breton, em O Amor Louco:

 

A lição de Leonardo, ao incitar os seus alunos a copiar os quadros segundo o que vissem desenhar-se […] numa parede já velha que demoradamente fixariam, está ainda longe de ter sido compreendida. […] O homem só poderá ser senhor dos seus actos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que um écran apropriado lhe tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos actos. Ora, esse écran existe. Qualquer existência comporta um todo homogéneo de factos aparentemente escalavrados e nebulosos: bastaria encararmo-los mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro. […] Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então ao nosso encontro […] as forças do acaso objectivo, que para nada querem saber de verosimilhanças. Tudo quanto o homem pretende saber se encontra escrito nesse écran em letras fosforescentes, em letras de desejo. (1937: 112-114)

Eis o essencial de Leonardo: os alunos devem pintar aquilo que colherem numa parede acidentada, que projectarem de si próprios nela. Antes de pintar, o pintor vê, no real, um objecto mais-que-real (em francês, surréel), o objecto que se comunica a si próprio num dispositivo aleatório: manchas, relevos, sombras. O pintor assiste a uma projecção, de que ele próprio é causa imediata, mas que não controla: alucinação, sobre o objecto exterior, de uma imagem interior, autónoma. Rimbaud escreve, na célebre carta a Paul Demeny: «Assisto à eclosão do meu pensamento» (1871: 250). O pintor assiste à eclosão da imagem que ele constrói sobre o acidente do mundo. E «não te[m] culpa » (ibidem), nem mérito – a não ser o mérito de estar disponível, atento, a colher a imagem aparecida.

Donde um projecto de emancipação: «O homem só poderá ser senhor dos seus actos», «virão então ao nosso encontro […] as forças do acaso objectivo». Pelo caminho, é preciso vencer «os princípios lógicos», a lógica de um realismo estrito; mas o surrealismo não apenas nega a lógica, antes persegue uma lógica paradoxal, intuitiva.

«Tudo quanto o homem pretende saber se encontra escrito nesse écran em letras fosforescentes, em letras de desejo», diz Breton. Mas as letras do desejo acabam escritas ao rés da realidade do mundo, transformando o caos do écran na ordem de um sentido revelado. Começam por surgir no próprio sujeito: o observador lê aquilo que escreveu sobre essa parede anterior. Não se pode separar a visão da projecção: o sentido do mundo depende dos acidentes na parede e da disponibilidade do observador para ver a figura a pintar. Como quem, olhando para uma fotografia de Atget, visse nela um crime dissimulado, ansioso por ser descoberto.

Não suportamos a desordem das coisas, precisamos de interpretar o mundo; projectamos figuras em paredes escalavradas, lemos faces em estuques estalados. Aceitamos o conhecimento intuitivo.

 

 

*

 

No artigo «O asno podre», publicado no nº 1 de Le Surréalisme au service de la révolution (1930), Salvador Dalí propõe:

 

Uma atividade de tendência moral poderia ser provocada pela vontade violentamente paranóica de sistematizar a confusão.
[…]
Creio que está próximo o momento em que, por um processo de caráter paranóico e ativo do pensamento, será possível (em simultâneo com o automatismo dos outros estados passivos) sistematizar a confusão e contribuir para o discrédito total do mundo da realidade. (1930: 9)

«Sistematizar a confusão»: paradoxo? Confusão e sistema deveriam repelir-se; mas a proposta de Dalí é tornar a paranóia um instrumento, pelo qual se mobiliza conscientemente o inconsciente. Trata-se de propiciar a paranóia como operação criativa, acesso a uma nova leitura do mundo, comunicando ainda com a humanidade: «A paranóia serve-se do mundo exterior para fazer valer a ideia obcecante, com a inquietante particularidade de tornar a realidade dessa ideia válida para os outros» (ibidem).

Mas como pode o sujeito dominar a paranóia, se ela é, por definição, aquilo que domina o sujeito? Contra esse uso voluntário, controlado (portanto artificial?), resta ler o testemunho impressionante de August Strindberg em Inferno (1898), relato de uma paranóia destrutiva: o sujeito vê figuras em bocados de carvão, ouve os amores-perfeitos a endereçarem-lhe avisos, interpreta o ruído de tosses como um código secreto, receia máquinas eléctricas escondidas em sótãos – considerando todas as pessoas cúmplices de uma conjura contra a sua vida.

Ora, esta compreensão paranóica do mundo está cheia de sentido: atribui uma motivação ao mínimo acaso. Na verdade, a paranóia sofre ao mesmo tempo de excesso e carência de sentido. Excesso, porque nela tudo é significativo: mesmo as manchas na madeira se tornam uma mensagem secreta; tudo é signo. Carência, porque o sentido do universo se resume a uma reiterada agressão, tudo existe no mundo – não para culminar num livro (Mallarmé) mas – para atacar o sujeito. O qual sente uma presença hostil nas suas costas: «É frequente parecer-me que atrás da minha cadeira está alguém. E dou facadas nessa direcção, imaginando que combato um inimigo» (1898: 135). Jacob luta contra o anjo, mas só acerta no ar vazio…

Nem sempre as leituras do mundo são libertadoras. Se a ciência ou a doxa amiúde substituem a multiplicidade do real por esquemas pobres, uma interpretação paranóica do mundo também pode esgotar-se numa narrativa centrada no sujeito. O sentido não é forçosamente um bem.

 

 

3. Há um crime na fotografia de Paris? Ou somos nós, observadores, que projectamos o crime na imagem? Devemos usar uma paranóia estratégica para, como o pintor perante a parede, encontrarmos um sentido misterioso? O que pertence à imagem, e a nós?

Em vez de apresentar um fiel da balança definitivo, prefiro esta solução também estratégica, caprichosa e plural: depende.

Depende da imagem, do sujeito, do desejo, da luz e da rua, da atenção que se presta e da urgência que temos, nunca responderemos com rigor porque somos parte implicada – não podemos sair de nós e ver o mundo tal-como-ele-é (mesmo supor um númeno sob os fenómenos é um artifício humano, demasiado humano), mas também podemos recusar o solipsismo, apostar na realidade do mundo além de nós, apostar na narrativa que postula a realidade, inventar as regras à medida que jogamos, inventar as regras interessantes, jogar.

 

 

*

 

«Nunca um lance de dados abolirá o acaso», escreve Mallarmé (1897: 453). É o título do célebre livro-poema, e é também um verso que atravessa as páginas, interrompido por estrofes em corpo menor e versos à deriva no branco tipográfico. Depois, a fechar o poema: «Cada pensamento emite um lance de dados».

Pelo contrário, seria possível defender que um lance de dados abole o acaso de cada vez: contra a possibilidade de seis algarismos, cada dado apresenta uma ocorrência, um caso, de 1 a 6. «Caso» significa aquilo que cai (cf. cadere), como caem os dados ou os ossinhos de jogos divinatórios muito antigos; caso é a actualização do possível, redução do virtual a uma realidade concreta, tangível – irreversível. Alea iacta est: lançado o dado, nada pode fazer com que não fique lançado.

E nós nunca podemos senão jogar o dado, transformar o possível infinito num real específico, fixando o acaso num caso. Um pouco como quando, perante a música aleatória ou estocástica – Cage, Boulez, Xenakis –, se grava um disco: cada gravação é apenas uma actualização do virtual. A interpretação, o disco são inimigos do possível, fixando-o.

Porém, nenhuma gravação abole realmente o acaso, infinitas gravações futuras permanecem possíveis. Nenhum lance de dados esgota o virtual: após cada pensamento, resta continuar a pensar. Rien ne va plus? Pelo contrário: ainda mal começámos.

 

 

∞. Em Parque de Ruínas (2018), Marília Garcia questiona os limites da visão: o que vemos, o que perdemos em cada imagem, o que ainda não sabemos ver. E comenta:

 

(se a gente começa a escrever           anotar
e nomear o que acontece
será que consegue fazer as coisas
existirem de outro modo?)
(2018: 21)

E se escrever alterar o mundo? Se escrever não for apenas descrever, se a palavra não for apenas mimética, se o texto não vier no fim das coisas? Se escrever for também ver, de mais-que-ver o mais-que-real? Se escrever revelar na imagem o crime dissimulado –projectar o desejo na parede escalavrada – e jogar o mundo como um jogo? Se escrever permitir um outro modo, por exemplo este, aqui, agora, assim –

 

 

 

Bibliografia

BARTHES, Roland (1980), La Chambre Claire (Note sur la photographie); ed. ut.: A Câmara Clara, trad. Manuela Torres, Lisboa, Edições 70, 2005.

BENJAMIN, Walter (1931), «Kleine Geschichte der Photographie»; ed. ut.: «Pequena história da fotografia», in A Modernidade, trad. João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006: 243-269.

BRETON, André (1937), L’Amour Fou; ed. ut.: O Amor Louco, trad. Luiza Neto Jorge, 2ª ed., Lisboa, Estampa, 1987.

DALÍ, Salvador (1930), «L’âne pourri», in Le Surréalisme au service de la révolution, nº 1 : 9-12; ed. ut.: https://melusine-surrealisme.fr/site/Surr_au_service_dela_Rev/Surr_Service_Rev1.htm (1.04.2023).

GARCIA, Marília (2018), Parque das Ruínas; ed. ut.: Lisboa, Mariposa Azual, 2022.

LLANSOL, Maria Gabriela (1977), O Livro das Comunidades, Porto, Afrontamento.

MALLARMÉ, Stéphane (1897), Un Coup de dés jamais n’abolira le hasard; ed. ut.: in Œuvres Complètes, ed. Henri Mondor & G. Jean-Aubry, Paris, Gallimard, 1951: 453-477.

RIMBAUD, Jean-Arthur (1871), carta a Paul Demeny, 13 de Maio; ed. ut.: in Œuvres Complètes, ed. Antoine Adam, Paris, Gallimard, 1972: 249-254.

STRINDBERG, August (1898), Inferno; ed. ut.: Inferno, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1988.

 

 

 

é autor de obras de ficção, teatro, poesia, ensaio e outros géneros. É Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto e Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa.

Número #07
1. Jogo, acaso, crime: notas em torno de um puzzle
2. Além de Mesão Frio
3. ARQUImarivar-TE // Tempo e Espaço
4. spell
5. esmagar, pisar, comprimir é um gesto que demora
6. É boa a terra do lugar-comum: Joyce e Rui Nunes, in medias res
7. I Edição do M’illumino d’immenso – Prêmio Internacional de Tradução de Poesia do Italiano para o Português
8. Os trajes e os corpos
9. Cnidaria (Fragmento)
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