esmagar, pisar, comprimir é um gesto que demora
1.
Quinta da Brejoeira, 4950-660
Lerei os diários das cortes
numa cadeira de estilo oriental
a este sonho cravado em madrepérola
direi a humidade a alastrar nas paredes
do palácio. E quem limpa os cristais
do lustre central? Uma tonelada não é
coisa pouca, tanto castiçal ai se eu
o partisse ai quanto tempo além da
vida corporal necessitaria para pagar
a dívida? Quanta eternidade leva o
grande susto do nácar, quer dizer a
vontade inteira que foi há tão pouco.
Dá-me um piano vertical de um século
distante uma sala de fumo para esses
senhores pensarem e arrotarem o almoço
das senhoras que não olham o teto de gesso
talhado ou a simetria dos símbolos octogonais.
Quero o escudo em relevo nessa imponente cadeira
dançar na mesa onde Salazar e Franco negociaram
uma cama elevada, mesmo num palácio entram ratos
ratos ratos dorme o rei num colchão de crinas de cavalo
um penico ocultado numa mesa mui elegante olhai
Diana a deusa da caça, Dona Hermínia fazia viagens
às colónias e trouxe variadas armas africanas olhai
são tão bonitas as camélias
e pelo caminho para as cavalariças
são tão bonitas as camélias
pelo caminho a perder de vista há a fonte onde a água
são tão bonitas as camélias
onde a água corre por entre os rumores de
magnólias centenárias e disseram que a prensa
mais pequenina é para os licores adocicados
quando me sentei na namoradeira perguntei
eram barricas de carvalho francês?
A prensagem no alambique —
esmagar, pisar, comprimir é um gesto que demora
pode ter sido isto uma antiga capela
pisar as uvas é uma forma de orar
olha a forma bela como a rosa se abriu
e os alambiques e os alambiques e a rosa ereta
o sino de cima avisa a hora da refeição
o de baixo a emergência: incêndio revolução
dos que vivem na rua antes do púlpito e do sermão
houve quem se benzesse ao entrar na capela
quem não se benzesse houve imaginando
a família no púlpito os empregados lá em cima
atrás da janela onde nada se vê forma ou sombra
esmagar, pisar, comprimir é um gesto que demora
talvez se ouça o eco de uma gargalhada
mas na missa não se pode rir, atenção
a criadagem não pode sair do palácio
saiu-lhes a sorte grande dormem acima do rei
tão perto das nuvens tão alto e que importa se a
camarata não tem janelas que importa
saiu-nos a sorte grande: abrigo e comida
Santa Ana ensina a ler tanto queríamos ver
o confessionário subtil na porta talhada
não voltarei a cometer luxúria e gula, Senhor
disseram eles cravando as unhas limadas no
território de trinta hectares suando no campo de
exercício dentro do bosque cerrado sibilando
nenhum descendente teve filhos é sina é
a líquida solidão alastrando e um desejo
murmurado à última passa que pergunta
na língua que desejo que fervor e além
dos portões que céu é este que tudo vai
cindir rasgar cindir, essa estrada dividiu a
(e o champanhe a estalar!)
propriedade: que o futuro sempre chega.
Pode tardar mas chega.
Mas que importa a história?
O mais provável é fazerem aqui
um exuberante hotel de luxo.
2.
O FRUTO POLIÉDRICO. 23h59
Na mesa o fruto poliédrico
muitas faces – a carne doce
não sei se eram sussurros
se era o vento
(quem fechara a janela?)
dançavam as árvores imunes
a tudo isso
era um corpo ferido por não cantar
a janela não faz barulho ao
abrir-se
ainda dançam as árvores
é preciso esmagar a polpa
para chegar à semente
espremer dos gomos o sol
o corpo pede outro corpo
para curar a fome e a ferida
e faz barulho a colisão
— na saliva, medo e desejo
formam a potência muda
dançavam as árvores imunes
a tudo isso.
TERCEIRA OPÇÃO. 00h00
Há o gesto sacricial de separar a voz do corpo
(estão a construir uma escada infinita)
dever-se-á descolar o imaterial com perícia
com velocidade dever-se-á proceder à extração
da última palavra transitória
não limpar o correr dos fluídos
do mel, da resina, da transparência
(a escada oferece percalços)
contornar a flor que plana na noite
fechar o vidro a essa mão desconhecida
aceitar a pilhagem da memória, aceitar a tontura
evitar olhar os passarinhos nos cabos condutores
a carne viva, a eletricidade e – claro
pousar o chapéu de dançar
pousá-lo contra o assobio do vento
por favor, ignore-se a ciência do signo
ignore-se dar alimento ao nome a troar
o anonimato tem inúmeras vantagens
cumpridos os rituais de iniciação, a saber
1) não conhecer o jogo para jogar o jogo
é o princípio do jogo
2) pode o corpo avançar ou recuar –
mas não imobilizar-se
3) havia uma terceira opção, qual era
a terceira opção
(estão a construir uma
escada
infinita)
E a última torção – delicada ou violenta?
3.
Ela 1:
Cobraram outra vez a fatura errada.
E o erro da fatura é o erro do mundo porque o que nos prometem vem com letras
pequeninas e um engodo omitido e pague x, tenha y não parece ser tão simples assim,
gostaria de saber quando começou esta dissonância em que mesmo quando não há
engodo (oxalá, oxalá) há um qualquer desacerto desencaixe e vem um erro ao calhas de
parte incerta não localizável não sei se de humano se de máquina se de pássaro ou fusão
que tudo é labiríntico dá vertiiiiigens não conseguimos chegar à fala fora de opções onde
não cabemos (mesmo encolhidos) e esse erro miniatural com o tempo agiganta-se com
estrondo na queda! com estrondo na queda! pois sim, ouve, sei que há males piores e
também há os males que não matam mas moem é assim que dizem os que o dizem é
assim que se vê um cansaço alastrando pelo que mata pelo que mói tolhendo neste
vórtice alucinado dilui-se a beleza no caos sugada a certeza de se erguer qualquer
pequenino cosmos qualquer reduto de movimento amplo livre coroado de ores que são
ores sem passos de dança coreografados por uma entidade insana arbitrária e qual a
opção menos errada para chegar à fala com alguém que mesmo sendo joguete
manietado se importe por um instante — que possa crer que possa crer que possa crer
que no dia 1 de janeiro apagaremos todos os erros limparemos a vergonha coletiva
seremos lâminas de luz * seremos água — se importe por um silêncio fora da opressão
que de língua atada quem não está de um jeito ou de outro (mas olha esse abismo entre
um jeito ou outro), seria bom que ouvíssemos a festa a chamar e ao invés de trapos de
vácuo insuflássemos o desejo seria bom que
Ela 2:
Lamento, mas não compreendi a sua questão.
Pode reformular?
Utilize apenas *frases curtas.*
_Exemplos:_ *”Pagar fatura”* ou *”Carregar o meu telefone”*
(Porto, 1990) publicou em 2021 o primeiro romance, Escavadoras (Prémio Literário Revelação Agustina Bessa-Luís). Seguiram-se os contos O homem na rotunda, Quando Virmos o Mar e Medula (Prémio Nortear - Galiza/ Norte de Portugal). Escreveu os libretos Maria Magola, Madrugada: As razões de um movimento e a peça O Guarda-Rios Mágico. Faina é o seu segundo romance. Acredita no poder e na liberdade da palavra.