Manequinaria
Hans Bellmer, fotografias que compõem Les Jeux de la Poupée (The Games of the Doll), 1949.
O manequim cinematográfico
Na comédia muda The Goat (1921), Buster Keaton encontra-se no final da fila para receber pão grátis, sem se aperceber que aguarda a sua vez atrás de dois manequins imóveis. No momento em que se apercebe da situação, é já tarde demais e Buster vê a janela ser-lhe fechada diante dos olhos.
No filme de 1947, Dreams that Money can Buy, Hans Richter conta a história de Joe, um indivíduo comum que, enquanto pensa numa forma de pagar o recente aluguer de um quarto, descobre olhando no espelho que consegue ver o conteúdo da sua mente. Disposto a rentabilizar o seu dom, Joe torna-se “detetive de sonhos” e dedica-se a criá-los e vendê-los a uma panóplia de clientes insatisfeitos e frustrados com a vida. Ouvimos o narrador:
You’ve discovered that you can look inside yourself! You know what that means? You’re promoted. You’re no longer a burden. You’re an artist! Remember a poem you once read: “the eye is a camera”, it said. Suppose like a film that could retain the images that glight so secretly through your brain. Have you ever tried to see the shadow world inside photographed by the retina and held suspended in its memories? (1947: 3min 21seg)
No segundo caso que Joe recebe, uma jovem tenta seduzi-lo de forma a obter assinaturas para uma variedade de causas. Apesar de reticente, Joe acaba por concordar e, no momento em que quase se beijam, uma nuvem de fumo invade o cenário: em close-up surge um manequim feminino desmembrado, The Girl with the Prefabricated Heart, e assim se inicia uma breve narração da história de amor malfadada de Julie[1] e o seu pretendente, num universo totalmente transfigurado – que é o do sonho.
Em ambos os exemplos, o elemento do manequim assume dois tipos de funções distintas, a saber: no caso de Buster, uma função humorística, designada para enfatizar o absurdo e o riso provocado pelas constantes e já previsíveis trapalhadas do personagem. Já no segundo, o mesmo elemento assume proporções formais: com o recurso à animação em stop-motion, semelhante a um ballet mecânico onde ritmo e movimento se entrelaçam, Fernand Léger estabelece a ponte entre a realidade do pós-guerra e o espírito de mecanização que contamina os projetos vanguardistas dos anos ’20, ao mesmo tempo que critica a desintegração do indivíduo como unidade biológica através da sua substituição por manequins – tudo se torna mecânico, até o ato de fazer amor.
Léger coloca aqui em causa dicotomias fundamentais para os surrealistas, entre elas o confronto entre sonho/imaginário vs. realidade, amor vs. narcisismo. Perante a rejeição da sua amada, o personagem masculino é decapitado e as partes do corpo desintegram-se perante a fatalidade de se ter apaixonado por um autómato com um coração manufaturado, desprovido de sentimento:
And so she rides on through the evening
As pure as she was at the start
For there’s no man alive who could ever survive
A girl with a prefabricated heart
A love-proof, unbreakable heart
(1947: 28min 12seg)
Hans Richter e Fernand Léger no set de filmagens de Dreams that Money can buy, com o manequim feminino de The Girl with the Prefabricated Heart. Fotografias de Arnold Eagle (1944).
Pela via da montagem cinematográfica, os manequins de Léger funcionam como simulacro das fantasias do homem, e constituem o leque experimentalista e objetual dos surrealistas[2]: alavanca de pulsões sexuais, símbolo mecânico da objetificação do corpo que dilacera os contornos humanos, o manequim surrealista leva ao extremo a potencialidade fetichista do corpo por meio do desmembramento das partes, sem nunca perder de vista o princípio de uma loucura fecunda, do ato profanador transformado em ato criador. O poder de desconforto e provocação deste objeto dificilmente é igualável: no Manifesto de 1924, Breton apresenta o manequim como um dos objetos intrinsecamente ligados ao maravilhoso que tanto procurava; prova disso é o protagonismo que assume na Exposição Internacional Surrealista de 1938, precisamente por se tratar de um objeto que joga com as polaridades fundamentais da existência e quebra as fronteiras entre animado vs. inanimado, vida vs. morte, homem vs. máquina e sagrado vs. profano, como explica Jeanne Danos:
Comme hybride enfin, oscillant entre le vivant et l’inerte, le vrai et le factice, elle est un support privilégié pour les thèmes d’ambiguité et de métamorphose, mais aussi, oscillant entre le jouet et l’idole, une médiatrice privilégiée entre le sacré et le profane, douée d’une élasticité toute particulière, propre à l’expression de l’approche ou de la mise à distance du sacré. (1966: 344).
Se estas são dicotomias que permeiam a nossa existência enquanto seres humanos, até que ponto é correto encarar um objeto inanimado, desintegrado, como reflexo das nossas projeções enquanto seres completos? Até que ponto este caráter ambíguo permitiu que evoluísse no tempo e conquistasse um espaço privilegiado na esfera artística?
Este dilema atribui à boneca-manequim um papel representativo muito particular, graças ao elo que estabelece com a aparência humana, e que advém também da diversidade de situações em que a encontramos, de caráter lúdico ou mesmo religioso. Na qualidade de símbolo, a sua aparição acontece na esfera do sonho, da alucinação, de um devaneio eufórico – isto porque a desarticulação é apenas parte de um ritual de esvaziamento, purificação e transfiguração. Hesitemos aqui – o espaço é fundamental: a boneca-manequim está no centro de grandes debates das sociedades contemporâneas, sejam eles a concretização de perversões sexuais, aumento do recurso a cirurgia cosmética, multiculturalismo, clonagem e identidade de género. Somos diariamente confrontados com uma funcionalidade corretiva, quer pela via da moda como da publicidade: temos tendência a trabalhar numa imagem apresentável para nos inserirmos numa conceção agradável de mundo, e é esse estereótipo que a Modernidade veio desconstruir com o culto do feio e a plena consciência da precariedade humana.
A Die Puppe bellmeriana
Em Anatomie de l’Image, de 1957, Hans Bellmer descreve o corpo humano como o ‘’inconsciente físico”[3], o suporte basilar de um sistema que o mais comum dos mortais encara como sendo estruturado, universalmente definido, inquebrável. Este corpo é metamorfoseado pelo desejo e o sonho, como mecanismo para enfrentar a teia de impulsos que o ser humano dificilmente consegue satisfazer no seu quotidiano. Bellmer vê as partes do corpo como elementos articuláveis, postos à disposição do artista que as manipula a seu bel-prazer, transformando-o em objeto experimental e (re)ensinando-nos a apreender a sua verdadeira essência: nesta passagem de corpo-imagem a corpo-objeto, o artista desvela-o através da desconstrução da perceção tendencialmente totalizadora que adotamos perante a vida e a disposição ordeira das coisas no mundo.
Pelo modo de representação, as experiências de Bellmer com a sua Die Puppe nos anos ’30, inspiradas nos autómatos dada de George Grosz e na jovem Olympia do conto de Hoffman – mulher de poucas palavras, tardiamente revelada autómato e que conduz Nathaniel à loucura –, refletem também o estilhaçamento do conceito de identidade social. Do corpo que se separa da alma e se desintegra em si mesmo, produto da dilaceração trazida pela guerra.
A (de)composição da boneca – semelhante ao processo de formação da imagem poética –, o trabalho de artífice per se, equipara-se a um ato de amor, obsessão, consumação de um desejo carnal em cenários de perversão: desde a visualização da figura feminina como jovem sexualmente precoce, como prostituta ou fantasma da castração, a boneca alude às fantasias infantis que proliferaram no seu trabalho mais tardio, e que estão em diálogo com as afirmações dos surrealistas ao nível exploração do inconsciente, do erotismo e do sonho.
Apesar de não pretender aqui discorrer sobre as teorias psicanalíticas do corpo e dos seus modos de representação nas artes, é certo que o manequim surrealista levanta importantes considerações sobre os níveis de provocação de uma imagem – neste caso, da imagem fotográfica –, provoque ela prazer ou repulsa. As fotografias da boneca desmembrada de Bellmer, tiradas entre 1936 e 1938, foram compiladas numa seleção de catorze imagens acompanhadas de um poema em prosa de Paul Éluard, intitulada Les Jeux de la Poupée (1949). Na qualidade de objeto multimedial, fotografia e poesia unem-se numa dinâmica narrativa e cada par imagem-poema encerra em si diferentes aspetos relativos à história da boneca. A adição dos fragmentos verbais às fotografias pode ser lida como uma tentativa de atribuir a um elemento grotesco pequenos laivos de humanidade e identidade, apelando à empatia do leitor e por instantes reduzindo a distância ontológica provocada pelo Unheimliche freudiano:
II
We never hear her speak about her country, or her parents. She fears an answer from nothingness, the kiss of a mute mouth. Agile and loose-limbed, a slender girl-mother, she throws to the ground the mantle of walls and paints the day as she fancies. She frightens animals and children. She makes cheeks paler and the grass more cruelly green.
(1949: 76)VIII
In the house with unjointed timbers and cracks in the roof, on the staircase whose steps are clad in old shoes, she sits sturdy, rough-cut, and opaque. In a word, she is alone. Alone in her clammy chambers, alone, without her eyes, implacably. It is elsewhere that clean air plummets down on to the semblance of a shared life.
(1949: 88)
Os versos de Élouard transportam-nos para um sonho efusivo, recorrente, que todas as noites nos persegue. A imersão total num ambiente de perversão onde nos tentamos agarrar a qualquer resquício que seja familiar e confortável. A boneca como notável demonstração do esbatimento de dicotomias basilares da natureza humana. Que habita o lugar onde o desejo se basta a si mesmo. Uma estranha forma de narração que brota do casamento entre poesia e fotografia, sobre uma estranha forma de vida que não é vivida, mas é contada – vida que vem à superfície desse oceano que é a imaginação, segundo nos dizem os surrealistas.
NOTAS
[1] Um dos traços mais notáveis da produção de Fernand Léger reside no diálogo que o artista frequentemente introduz dentro da sua obra, como se diferentes objetos pertencentes a domínios mediais distintos interagissem e se contaminassem. Léger introduz a pintura de sua autoria Julie, la belle cycliste, de 1945, no excerto de The Girl with the Prefabricated Heart, no momento em que a manequim-protagonista da curta-metragem é vista a fugir do seu noivo em cima de uma bicicleta.
[2] Jean-Jacques Rousseau, grande pedagogo do século XVIII, via a boneca como modelo da mulher, o equivalente a uma boneca-manequim – conceito-basilar deste ensaio. A presença recorrente de uma figura articulada com contornos femininos na história da arte contemporânea é uma das motivações para interrogarmos a função transgressiva dos manequins-objeto criados nos séculos XX e XXI. Apesar de pontualmente encontrarmos, na gramática experimentalista dos surrealistas, o culto do andrógino como uma destituição de formas e a supressão da linearidade distintiva entre corpos e géneros – como é o caso da Poupée de Pierre Molinier, nos anos ‘70 –, a mulher e os seus contornos estereotipados são a mais elementar fonte de prazer e desconcerto destes artistas.
[3] O livro foi originalmente publicado sob o título duplo Pequena Anatomia do Inconsciente Físico ou a Anatomia da Imagem.
BIBLIOGRAFIA
Bellmer, Hans, Anatomie de L’Image. Paris: Terrain Vague, 1957.
____/Éluard, Paul, The Games of the Doll (Les Jeux de la Poupée). Paris: DILECTA, 2015 [1949].
Benayoun, Robert, Erotique du Surréalisme. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1965.
Breton, André, Manifestos do Surrealismo. Lisboa: Letra Livre, 2016.
Danos, Jeanne, La Poupée mythe vivant. Paris: Gonthier, 1966.
Hoffman, E.T.A, “O Homem da Areia”, Contos Nocturnos. Lisboa: Guimarães Editores, 2005.
John Latouche, “The Girl with the Prefabricated Heart”, Dreams that Money Can Buy. Interpretação de Libby Holman e Josh White, 1947.
Fernand Léger, “The Girl With the Prefabricated Heart”, Dreams that Money Can Buy. EUA, 1947.
Hans Richter, Dreams that Money Can Buy. EUA, 1947.
Schenck, Joseph/Keaton, Buster/ St. Clair, Malcolm, The Goat. EUA, 1921
é doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora não-doutorada do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. A sua tese é centrada na vertente interartística do Surrealismo português, sobretudo nas obras de Carlos Eurico da Costa, Henrique Risques Pereira e Isabel Meyrelles.