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É boa a terra do lugar-comum: Joyce e Rui Nunes, in medias res

 

Caro Rui,

é deste país, sequestrado pela memória, que lhe conto a minha quota de eteceteras e parêntesis, a pequena face que amiúde espreita por entre os muitos rostos a que vou dando forma, um gesto, uma voz, as caras coalescendo nas máscaras, nas mascarras, as poses funcionais a que o corpo se afinca para fingir o melhor que pode, ou o melhor que sabe, que não vê por todo o lado os dejectos da eternidade. Este último ultimíssimo sentido das coisas boiando em ralos e valetas, as altas referências puídas de verdugo, os deuses estendidos sobre caixotes de papelão, dormindo na penumbra dos prédios. Enquanto indecências lustrosas, impecavelmente limpas, nos vendem lá do alto dos seus olimpos blindados a suave exterminação dos nossos vizinhos e a propedêutica potencialmente lucrativa do burnout, enquanto os silos se enchem de mortos e a morte se acende e apaga ao ritmo búdico do ecrã, escrevo-lhe, Rui, escrevo-lhe ao ritmo desta desrazão de escrever, a desrazão de quem acredita não poder mudar o mundo e, por isso, continua a escrever por não poder mudar o mundo, citando de memória aquele brevíssimo poema de Albert Ehrismann, citando de memória tanta coisa, tantas coisas a que já não sei restituir o nome e a assinatura de posse. E por isso vou dando a todos esses versos despegados, à pesporrência colante dos aforismos, a nitidez inacessível do segredo a que os nossos olhos se expõem, olhos que tanto podem estar abertos como podem estar fechados, nesse gesto de abandono ou de furioso apaziguamento em que se sabe existir o mundo, e todos os mundos no mundo, antes e depois da nossa singular presença nele.

Queria apenas dizer-lhe que comprei hoje de manhã um caderno novo, de argolas e capa azul. É esse caderno que estou agora a estrear ao endereçar-lhe estas linhas. Azul como era azul a capa da primeira edição do Ulysses, um azul escolhido a dedo por Joyce, minuciosamente, para que a cor de fundo desse livro evocasse, com o branco das letras, as cores da bandeira grega, a ambiência reverberante, senão espiritual, do hipotexto homérico que James Joyce tanto amava. É disso que lhe quero falar, das minhas errâncias pela escrita de Joyce, do novo projecto em que estou envolvido com os suspeitos do costume, o Óscar, a Terceira Pessoa e o coreógrafo Bernardo Chatillon (nunca lhe falei dele, pois não? nem ao telefone?), às voltas por Castelo Branco & arredores, entre leituras e ensaios, noites brancas, silêncios cérulos, percalços exaltantes.

Sabe, Rui, escrevo-lhe como se engenhasse um ardil para me capturar a mim mesmo. Tenho andado nisto há meses: ligo o computador, crio um novo ficheiro, abro o documento. Enfrentando o branco irradiante da página, tentando gizar uma frase, uma quase frase, um resquício minimamente auspicioso na arte de despontar recomeços. Mas têm-me saído fiapos estéreis, parágrafos humilhantemente tímidos, ansiosos de sufragar teorias que já vomito pelos olhos, de sentir as costas quentes por citações que, mais cedo ou mais tarde, me ficam meladas nos dentes, cuspindo-lhes os insípidos caroços. Daí ter arriscado esta hipótese: levantei-me da mesa, fui ao supermercado mais próximo, trouxe um caderno comigo, e aqui vai, então, deste lugar envidraçado que me traz a rua e as árvores ao fundo para dentro, aqui vai esta carta que lhe escrevo. As humanidades, indo aos gregos e latinos, eram justamente isto: longas cartas trocadas entre amigos à distância, a humanitas como efeito irradiado pela amizade ao saber. Uma comunidade de amigos fundada pela escrita, contagiados pela virulência das ideias, das inquietações, do espanto anterior a qualquer recobrimento filosófico. «Primeiro o milagre, em seguida a educação» (Sloterdijk, Tens de Mudar de Vida, p. 339). É um pouco à boleia desta imagem que urdo para mim esta cilada, ora escrevendo à velocidade da luz, ora detendo no ar a esferográfica, cuidando deste desenho amendoado das letras, esta caligrafia de menina como em tempos me disseram, este cheiro leve a tinta fresca, quase doce, da Bic que me custou 40 cêntimos. E tudo isto faz parte, tudo isto se integra, tudo isto apela a um instante integrador nos enredos destes livros que me acompanham, nas odisseias múltiplas em que todas estas águas se misturam: trago na mochila o Ulisses de Joyce, por força do tal novo projecto artístico que tenho em curso (o primeiro de vários espectáculos tem por título Calipso ou a experiência do possível), a par da Odisseia de Homero e desta espécie de diário de bordo em que consiste Uma Odisseia, de Daniel Mendelsohn. Mas ando também com o Ulisses de Benjamin Fondane, poeta romeno assassinado numa câmara de gás de Auschwitz, a 2 de Outubro de 1944 (não esqueci a data, faço anos no mesmo dia). Tenho igualmente o Ulisses que Dante condena ao oitavo círculo do Inferno, na tradução da Divina Comédia assinada por Vasco Graça Moura. E um par de passagens sublinhadas no romance O Doente Inglês, de Michael Ondaatje (uma boa surpresa); a vontade súbita de reler Ulisses já não mora aqui, de José Miguel Silva; um poema de Joan Margarit que entrega Ulisses à morte, à amnésia de que se alimentam os mitos, excepto «no sonho de um poeta cego» em que o rei de Ítaca continua a salvar-se: «[…] Na cabeça de Homero, / eterno e rigoroso, a cada alvorada, / um solitário Ulisses desembarca» (Misteriosamente Feliz, com tradução de Miguel Filipe Mochila).

E, claro, O Mensageiro Diferido (gosto tanto dele) e o Ulisses como o Rui o vê: sem família que o acolha, nem porra alguma que redima o miserável de todas as injúrias e intempéries passadas, vacilando feito bêbado pela areia suja de plásticos, gaivotas repenicando carcaças, pedaços de madeira podre. É este o Ulisses que irrompe a meio de Neve, Cão e Lava (2023), ainda preso por atavismo nostálgico «ao longe» dos horizontes marinhos, às amplas visões que a lonjura promete, sem reparar nos «peixes mortos» e nos «náufragos, de barrigas opadas» (pp. 31-2) que ondeiam debaixo do seu nariz, batendo-lhe no casco.

Tudo isto me descaminha nesta experiência do exterior que é, por definição, a experiência da literatura: a voz sem eu de um rumor comum em silêncio. Estes descaminhos e ziguezagues, este ir-indo-andando dos solitários, por entre pedras e tojos, pelas páginas de muitos livros. Livros que devêm, abertos por mãos de criança como as de Leopold Bloom, «uma rodela de vidro em relevo de uma vidraça multicolorida» através da qual se observa «o espectáculo oferecido com contínuas mudanças da via pública lá fora, peões, quadrúpedes, velocípedes, veículos, passando devagar, depressa, regularmente, rodando em roda em redor do redondel de um redondo globo precipitoso» (Ulisses, p. 623). Um caleidoscópio, um atlas, um livro cheio de figuras, um pedaço de vidro, um búzio, um botão anilado: como uma criança que ainda não sabe ler, mas sabe – pelo saber próprio que vem do corpo – como a polpa dos olhos e a palma das mãos reafirmam esta pequena, doce violência, o segredo inesperável da comparência à terra inteira. Isto de sermos, segundo Molly, «uma tal mistura de ameixa e de maçã», o desejo de «ter a casa toda a nadar em rosas» e «ver rios e lagos e flores de toda a espécie de formas e cheiros e cores brotando até dos fossos primaveras e violetas» (p. 729). Irrompem pelo meio minúsculos insectos palpitantes, o despertar da consciência que amanhece, o frémito inesperado e violento de uma qualquer impossibilidade que aspira a ser possível, urdida no mais íntimo de nós, à flor rasa da pele.

Anotações à margem, caro Rui, para um livro que ainda não acabei de escrever e que temo ver um dia terminado.

 

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[epifanias]

 

Yorgos Seferis, poeta grego: «A primeira coisa que Deus fez foi o amor.»

Tolstoi, no segundo volume da Guerra e Paz: «Os antigos deixaram-nos exemplos de poemas heróicos, em que os heróis constituem todo o interesse da história, e nós ainda não conseguimos habituar-nos ao facto de que, para o nosso tempo humano, uma história desse género não faz sentido.» (p. 167).

Lex Luthor, o arqui-inimigo do Super-Homem, pela boca de dois avatares num filme de Spielberg: «Algumas pessoas podem ler a Guerra e Paz e achar que é apenas uma história de aventuras. Outros podem ler os ingredientes de uma pastilha-elástica e desvendar os segredos do universo.» (Ready Player One, 2018).

Kevin Birmingham: «Sylvia Beach had recently heard that the Pope had inadvertently blessed a copy of Ulysses concealed beneath a prayer book. It wasn’t clear if that was a good omen or a bad one.» (The Most Dangerous Book, p. 311).

Silvina Rodrigues Lopes: «Jean-Luc Godard dizia a propósito da Nouvelle Vague que queria ter o direito de filmar rapazes e raparigas num mundo real para que ao verem o filme se surpreendessem de serem eles próprios e do mundo.» (Telhados de Vidro, n.º 7, p. 178).

Cesário Verde, no poema «Nós»: «Ah! Ninguém entender que ao meu olhar / Tudo tem certo espírito secreto!»

James Joyce, Ulisses: «As nossas vidas estão em perigo esta noite.» (p. 604).

 

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Para Frank O’Hara, quando na vida tudo se torna fantástico, não há lugar nem tempo para brincar ao faz-de-conta. Leio estas coisas, estes versos desarmónicos sorrindo sem medo no escuro, um modo acerado de ir vingando pelo mundo, a contrapelo do próprio mundo, um uivo qualquer de alegria. Quando foi a última vez que arrisquei proferir, sem vigilâncias maníacas quanto ao peso ou à densidade de cada palavra, que a vida é ou que a vida pode ser «fantástica»? Quando foi a última vez que um adjectivo desta magnitude garrida, ebuliente, me saiu dos lábios, sem pingo de vergonha pela sua insensatez, sem escrúpulos perante um desavindo fulgor de infância?

«[…] estou envergonhado do meu século / por ser tão espectacular / mas tenho de sorrir», continua O’Hara noutro poema. Escreve à boleia de um vitalismo urgente, faz do poema uma superfície permeável a todos os estímulos, dos carros que passam ao tremular eléctrico das luzes, da vida breve dos jornais ao bulício dos corpos ouvindo jazz e bebendo café várias vezes ao dia. Cede-se à loucura de entrever em tudo o que existe um silente propósito. Essa é a parte mais admirável, esta disposição espiritual para fazer cedências às marginalidades da vida sem o intuito de as ver integradas na segurança armadilhada de velhos hábitos e tiques orquestrados. Escrever sobre tudo porquanto é tudo o que os olhos vêem, numa simultaneidade alucinante, num corpo cuja pele é um dique em ponto de ruptura. Desposar o frémito rasante da visualidade, esse saltitar de «falena», segundo Didi-Huberman, que é o do tempo esmigalhado entre as unhas, o da vadiagem até à última estação de metro, num embalo indulgente. Deixar que a vida passe por entre os versos, como um pouco de vento por esta janela: o ondular do tecido, o desenho côncavo da luz, o roçar quebradiço da ponta de uma folha na haste da planta ao lado, neste pequeno rectângulo doméstico, onde uma aragem derruba o vaso mais leve espalhando a terra pelo chão. Deixar que isto aconteça, assim, a leveza de um acaso ditando a levedura do texto, palavras como cerejas acidentando a frase, uma vontade fraterna de estar à mesa e falar.

 

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A leveza do acaso: o nome de Frank O’Hara irrompe no antepenúltimo episódio de Ulisses, quando Bloom e Stephen saem para a penumbra do jardim, olham o céu constelado e, antes de mijarem ao relento, um ao pé do outro, se deixam tocar por «uma sombra oblíqua na tela de um estore de rolo fornecido por Frank O’Hara, fabricante de estores de janela, varas de cortina e persianas de enrolar» (Ulisses, p. 645). O poeta norte-americano admirava Joyce incondicionalmente. Andava com um exemplar do Ulisses por todo o lado, como quem confia nos desígnios mágicos de um talismã e através dele, sobretudo nas horas acerbas da Segunda Guerra Mundial, alistado na marinha, protege do desespero a memória da doçura. Porque o livro de Joyce é generosamente isso: a doçura de nada acontecer, a deriva a céu aberto pelo estralejar das ruas, o podermos ser salvos pela revelação da vizinhança entre as coisas, os corpos vivos, a respiração dos animais. «Deus», pensa-o Stephen Dedalus, talvez seja apenas «barulho na rua» (Ulisses, p. 195).

 

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Joyce (1882-1941) percebeu como o estertor da Primeira Guerra acabaria por esburgar em absoluto a percepção que se mantinha da realidade humana. Quem, no horror das trincheiras, viu o corpo de um amigo ir pelos ares e ficar com as tripas de fora, engordando ratazanas e empestando o pouco de ar respirável, viu também escancarar-se as universalizações magnânimas, as altas ficções iluministas pelas quais a ideia de civilização assegurava a relativa estabilidade de um cenário, um sentido e uma pose. O halo destas ficções não sobrevive à desolação das ruínas, ao cheiro a carne podre, ao tom gredoso da gamela quando não há o que comer. De um lado, a dizimação de populações civis e de combatentes. Do outro, as vítimas da gripe espanhola. Pela primeira vez, segundo Paul Valéry, a consciência extrema de que se é mortal estende-se à civilização no seu todo, engolida por inteiro pelo «abismo da História».

Ecos deste horror esbatem-se na mente de Stephen: «Ouço a ruína de todo o espaço, vidro estilhaçado e alvenaria a cair, e o tempo uma lívida chama derradeira. O que nos resta então?» (Ulisses, p. 30). O tempo da acção é o ano de 1904, dia 16 de Junho, o que permite a Joyce infligir na percepção da personagem o seu próprio distanciamento, na condição de exilado, face à brutalidade da destruição. No silêncio meditativo de Stephen Dedalus, o desastre é ainda, ou tão-só, uma intuição do desastre que está por vir; e, ao mesmo tempo, ou no tempo da escrita, constitui-se como sintoma daquele que sobrevive ao desastre e o recobre defensivamente de um certo halo de irrealidade.

Ao escrever o Ulisses, Joyce estava a reabilitar dos escombros o fulgor irredutível do real quotidiano. Como propõe Declan Kiberd, mais do que um romance, Ulisses constitui um longo rosário de estórias e instantâneos – as «epifanias» joyceanas –, de linguajares quotidianos que se tocam e se misturam na contingência irrepetível dos dias. Ao mutismo neurasténico de quem regressara inteiro ou amputado dos campos de batalha, Joyce antepõe a evidência salutar da fala entre os humanos, de os homens serem, por excelência, animais falantes. Haveria que desvelar na escrita um processo antiquíssimo de homerização, anterior à emergência do alfabeto e da cultura literária: o simples estar à escuta uns dos outros, como se escutavam uns aos outros os antigos nómadas em redor da fogueira, fundando nessa escuta o princípio de uma ética. Ao mutismo espessado pelo trauma, Joyce prescreveria, então, a convivialidade, o gárrulo mundano, as modulações singulares da voz, o simples estar em presença entre corpos e coisas.

A circunstância de haver ruas e esquinas onde os encontros e os acasos se dão constitui, desde logo, uma abertura face ao emparedamento do trauma. Ulisses, afinal, é um livro essencialmente exposto ao ar e ao vento, ao bulício dos espaços públicos, lugar em aberto para o florir acidental; e, em clave saborosamente biográfica, constitui um hino exaltante ao primeiro encontro entre Joyce, com 22 anos à data, e a mulher da sua vida, Nora Barnacle, cuja mão audaz descera pelo calor íntimo das calças do parceiro, ali mesmo na baía, ao pé do rio Liffey, em Dublin, para lhe bater uma memorável punheta. Aconteceu a 16 de Junho de 1904 e serviu de inspiração ao dia mais longo da literatura mundial.

Os grandes livros, insiste Kiberd, ensinam-nos a viver melhor. Não obstante o seu virtuosismo caótico, a sua composição prolixa e exigente, ou o rasgo quase inapreensível de certos episódios – «ele estava prestes a escrever algo que fugia aos caminhos batidos (p. 588), lemos em chave auto-referencial –, Ulisses é acima de tudo uma possibilidade de vida, de uma vida ser sempre possível, porquanto recomeçável. Destina-se a todos os humanos e a todas as espécies existentes, condignamente existenciais, na sua generosa amplitude: animal, vegetal e mineral. Tudo. Ulisses faz do mundo um espelho portátil. Faz de Dublin um fractal do mundo; e dos dublinenses, a humanidade. Se o agror da guerra ajudou a liquidar as esperanças na feliz irrealidade do que está para além dos céus, quis Joyce dar a ver na imanência suja do chão que pisamos a possibilidade de outros voos: um golpe de asa que, em simultâneo, fosse rasante e auspicioso. Temos pés e somos alados: eis um bom plano para um sonho lúcido, o mesmo que viver.

 

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Subsídios de Peter Sloterdijk para uma leitura do poema «O Rei de Ítaca», de Sophia de Mello Breyner Andresen: «Do ponto de vista do homem das atitudes, a Modernidade equivale […] à dependência da cadeira ou doutros móveis para se sentar, e eo ipso à extinção da capacidade de sentar-se no chão sem sentir o próprio corpo como um peso.» (Tens de Mudar de Vida, p. 346). Na senda desta observação, o poema de Sophia delineia um conflito entre duas mundividências civilizacionais, servindo-se de Ulisses como exemplo crítico de uma relação ao real que seria urgente restabelecer:

 

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado
(O Nome das Coisas, 1977)

 

Um pensamento desligado da mão é, ele mesmo, um pensamento amputado. E a perversão deste «erro» é tanto maior quanto mais indulgente é a pretensão de ver neste desligamento um modelo civilizacional superior. Por outras palavras: quem no poema diz «pensamento» diz, por arrasto semântico, uma epistemologia fundada na racionalidade e no logos, ou na valência imorredoura dos arquétipos platónicos, mas diz igualmente os conhecidos monstros da razão, a luz eléctrica nos sistemas concentracionários, ou a redução da vida à pura nudez contabilística. Sophia morreu em 2004 e, por força dessa cesura biológica irreversível, não pôde testemunhar o ritmo avassalador das tecnologias digitais a que estes seus versos concedem a pesagem rouca de um anacronismo; pois como não ler neles, também, a clarividência de Sophia quanto aos sinais crescentes da desmaterialização do mundo, a progressiva desrealização dos seres e das coisas? À textura irregular das tábuas de madeiras no desígnio de um barco, ou ao atrito sinuoso que decorre do maneio de um arado, a ontologia digital contrapõe a homogeneidade da lisura, do polimento total, um ilimitado ambiente plastificante que expropria a matéria da sua inscrição no tempo, do seu «sulco». No fundo, espectraliza-se a matéria, converte-se em «pensamento», o que hoje, para o complexo internético, se traduz por dados. (O Rui, na sua escrita, é igualmente sensível a estas questões: há uma passagem d’O Anjo Camponês em que distingue as coisas que envelhecem das «coisas que se estragam» e que remanescem num «lixo limpo», cf. O Anjo Camponês, 2020, pp. 56 e 82.)

A figura de Ulisses excede a mera gestão do poder, não obstante ser «rei de Ítaca»: ele é também carpinteiro e agricultor, homem de vários ofícios, afamado pela astúcia e pelos mil ardis. Ele «gabava-se» do que sabia. Esta feição envaidecida humaniza o «divino Ulisses» de Homero, redimensiona a imagem de um herói aquém dos idealismos impolutos, ferindo-lhe a intocabilidade, mostrando-o com defeitos. Por isso Joyce, desde a infância, nutria pela personagem uma genuína admiração: porque Ulisses é o pai de Telémaco, o filho de Laertes, o marido de Penélope, o amante de Calipso, o rei, o soldado de Tróia, o aventureiro, o estratega engenhoso. Mas é também o imprudente, o trapaceiro, o náufrago, o insolente, o vulnerável, um homem desesperado por regressar a casa. Sophia não estaria, de todo, a pensar em Joyce quando cinzelara os versos de «O Rei de Ítaca», mas não deixa de ser tentador entrever no impensado deste poema o «pensamento» solipsista de Stephen e a «mão» generosa de Bloom, cada qual, singular e inadvertidamente, à procura um do outro para libertar na punção inevitável dos seus erros o gradiente inesperado da errância.

 

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Duas gerações: a de Stephen e a de Bloom. Dois percursos de vida muito diferentes: as aspirações artísticas do primeiro, o funcionalismo científico do segundo. Os enredos mentais espelham as respectivas singularidades: os pensamentos de Stephen são autofágicos, acabrunhados pela culpabilidade em relação à morte da mãe, zebrados de cultismo enciclopédico; pelo contrário, a interioridade de Bloom é coloridamente frívola, erradia como o voo de falena, permeável a tudo o que retine no exterior e à superfície. Stephen é o filho para quem ter um pai é um mal necessário. Bloom é o pai que perdera o filho Rudy, onze dias após o seu nascimento. O dia 16 de Junho de 1904 levará o intelectualismo sombrio do mais jovem ao encontro do instinto pragmático do mais velho. É no episódio da maternidade, et pour cause, que se reúnem as condições de possibilidade para se nascer de novo, para despontar na existência individual um qualquer desígnio futurante. Saber caminhar entre os escolhos, escolher uma luta de cada vez, aprender a não chegar: eis o que um homem como Bloom poderá, talvez, ensinar sem pretensões a alguém como Stephen. Ensinando-o desinteressadamente, apenas pelo seu exemplo de vida, na imperícia jovial e desengonçada dos seus gestos, sendo quem é. Estende-lhe o braço, caminha com ele até casa, reencena a graça eucarística com um bolinho e «uma chávena de cacau Epps» (Ulisses, p. 600).

«A única coisa é caminhar e depois vai-se sentir um homem diferente. Não é longe. Apoie-se em mim» (p. 603). É porque afecta e se deixa afectar que o sujeito humano se constitui como sujeito, e não como essência. Na sua disponibilidade potencial, na feição porosa do contacto, na fissuração íntima pela qual cada um é também o outro de si, um dissídio, um ar perplexo: o que em mim está aquém do que sou. Daí que Dan Chiasson, num artigo do The New Yorker (publicado a 16 de Junho de 2014), leia em Ulisses o elogio mais comovente na literatura à expressão da bondade.

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«Chance furnishes me with what I need», disse Joyce a um amigo enquanto trabalhava no inacabado Finnegans Wake. «I’m like a man who stumbles; my foot strikes something, I look down, and there is exactly what I’m in need of» (num artigo de Louis Menand, The New Yorker, 2012). Joyce procurou pela escrita elevar a lei do menor esforço, a mediocridade das horas mortas ou o monturo nas traseiras de casa a um patamar de escala olímpica, à dignidade com que Homero tuteava deuses e guerreiros. Inalar o cheiro a fritos logo pela manhã, aguentar os périplos de um dia de trabalho, suportar ofensas gratuitas ao final da tarde, tagarelar em segredo sobre o ânus das estátuas, o calor húmido do primeiro beijo, a democraticidade das águas – eis um pouco dos pequenos nadas com que se recheia a espantosa exuberância psíquica de um cidadão comum aos olhos de Joyce. Eis, em cada um destes gestos e acções, o relampejar sobrevivente de uma hierofania, o pequeno soluço de um deus antigo ao qual já ninguém reza.

À luz de Peter Sloterdijk, em Tens de Mudar de Vida (2018), a par de outras realizações plásticas e artísticas nas primeiras décadas do século XX, a escrita de Ulisses comunga na revelação do ordinário – e na sua elevação à qualidade do que é incrível. O comum, a moleza do banal, o pó e o serrim que o nada deixa como resíduo: há em tudo isto uma reserva inesgotável de possibilidades, uma gama extraordinária de sentidos ocultos. Como no episódio «Ítaca», da página 664 em diante: abre-se uma gaveta da cómoda, e surpreende-se dentro dela a substancialidade do que é infinito e insondável. O recheio diverso de uma gaveta torna-se um impulsionador de vertigens.

No fundo, é um pouco isto, assim: o andar por aí de máquina fotográfica, ou de telemóvel na mão, sabendo que a realidade nunca é a realidade, nem sequer nos seus confins e imediações reconhecíveis, nem sequer na habitualidade que o uso dos nomes domestica ao dizermos as coisas. A realidade nunca é a realidade, por ser justamente repetição diferenciante: «Cada vida é muitos dias, dia após dia. Caminhamos por nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos-no-amor. Mas sempre nos encontrando a nós mesmos.» (Ulisses, p. 223).

No fundo, Rui, é um pouco isto, sim: a evidência iniludível do que não cessa de estar à flor da pele. A unha obstinada em raspar o cisco da caliça, o pedacinho friável na parede que desvela pouco a pouco a intimidade da ruína, o osso mais secreto do osso que nada desvenda de antiquíssimas paragens, nem da sublimidade cinemática dos fósseis, nem do arco acolhedor que o passado nos livros grafa em arrogantes maiúsculas. Apenas e só a poalha do refugo, tão-só o abandono ferrenho que nos tem desamparado e engolido a espécie, desde o primeiro punhado de terra atirado contra o chão para velar à vista um corpo igual ao nosso. No fundo, é este excesso de saber que nos tolhe amiúde o sentido destas e de outras clarividências. São coisas que me vêm aos olhos. Coisas que me vêem: o perfil da minha gata contra o vidro fumado da porta, qual sombra decalcada pela mão de Lourdes Castro. Um cortinado encardido, de um branco tosco, numa montra abandonada à face da rua. Um súbito retalho maneirista que uma resma de papéis delineia, presa às costas do banco no carro do meu irmão.

 

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E mais: estes zooms que me acontecem quando pouso o telemóvel em algum lado, com a objectiva ligada, e, de súbito, reparo na contiguidade quase total entre a lente do aparelho e uma determinada superfície: o tampo da mesa, a lombada dos livros, o tecido da roupa. Reparo, então, no ecrã a ser inundado por um coágulo túrgido de cores, um pormenor monstruosamente expandido – qual gota de água, ou de seiva, ou de sangue, que espalmássemos entre as pontas dos dedos. Desmaios coagulantes da luz, milagres incoativos que me fazem pensar nos tons de um Mark Rothko. Uma patologização do real, talvez, que a imagem fotográfica ajuda a revelar: uma textura qualquer fica de tal modo exacerbada que a univocidade de um objecto se pulveriza em inumeráveis corpúsculos, captados no seu processo contínuo de dissipação. Como a loucura das células cozinhando um cancro. Ou a evidência de que tudo, mas mesmo tudo, a cada instante que passa e não passa, uma vez ampliado até às zonas ignotas das partículas elementares, está sempre em mutação irreversível, num processo de infinitização (cf. Sousa Dias), à luz da física quântica: «[…] os incalculáveis triliões de biliões de milhões de imperceptíveis moléculas contidas por coesão de afinidade molecular numa única cabeça de alfinete […] até que, se a progressão fosse levada suficientemente longe, nunca em nenhum lugar o nada seria alcançado» (Ulisses, p. 642).

 

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Subestimamos o banal, a mandíbula rasa e em silêncio que aflora no mutismo das coisas para te morder ao de leve as canelas, despegando um beijo no ombro, suportando-te o peso. Julgavas-te de pé, julgavas-te dono e senhor da vontade de pores o teu corpo de pé, mas és ponto a ponto segurado, sustido pela plenitude inabordável desta superfície à luz em que tudo se avizinha de tudo: objectos na mobília, galhos no caminho, este copo de água, esse lanho na face, o papel crespo onde embrulhaste a chave de todas as portas e gavetas insidiosamente abertas. Ouves? É o riso daninho do mundo fazendo pouco de ti e das tuas derivas a caminho de casa. Mas não te melindres, não te ofendas; por vezes o riso é só um gesto desesperado de amor, uma atenção feroz a cada um dos teus dias, dias que são como desenhos na água. O segredo… se insistes, se gostas do som redondo do termo, continua a caminho. Pois, no fundo, insiste Joyce, «[…] isso repete-se. Pensas que te escapas e esbarras contigo próprio. O caminho mais comprido é o caminho mais curto para casa.» (Ulisses, p. 387). Reabre o livro as vezes que quiseres; repassa os olhos pelo que sublinhaste, come, bebe e sê alegre, segundo Bloom, vê como dançam estes signos, os gomos e a polpa dos vocábulos em inglês: He kissed the plump mellow yellow smellow melons of her rump, on each plump melonous hemisphere, in their mellow yellow furrow, with obscure prolonged provocative melonsmellonous osculation.

 

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Frank Budgen, pintor e amigo de Joyce em Zurique, dizia que o autor de Ulisses prestava atenção à singularidade de cada palavra à semelhança de um escultor perante a singularidade de uma pedra. A analogia é bastante fecunda, se a pensarmos à luz de André Barata (2022), por exemplo, e do seu entendimento quanto à materialidade relacional da linguagem. Pense-se em dispor das palavras como coisas no espaço. Suspender, por instantes, o funcionalismo esquemático pelo qual a cada palavra corresponde uma instância que a impele a significar. Emancipar do verbal a materialidade acústica, o significante musical em potência: por exemplo, o episódio das Sereias, no bar do Hotel Ormond, composto como uma fuga, a abertura da cena feita a partir do isomorfismo de ecos esparsos, retinires metálicos, ruídos, cintilações, que o desenrolar da acção se encarregará de fazer repercutir para contextualizar (o tilintar das moedas no bolso de Blazes Boylan anunciando a sua chegada e o seu encontro amoroso com Marion Bloom às quatro da tarde). Olhando Joyce à distância no contexto mais geral do seu tempo, como não captar no seu experimentalismo literário uma ressonância de fundo com as revoluções ebulientes da física moderna: a relatividade do tempo, o princípio da incerteza, as vibrações subatómicas constituintes da matéria? No episódio das Sereias, a música é ruído que pensa, à luz de Victor Hugo: como se as personagens fossem, na verdade, não as fontes emissoras de sons e de ruídos, mas a forma como sons e ruídos as sonham e imaginam. Leopold Bloom e as empregadas Lydia Douce e Mina Kennedy seriam, aqui, a consubstanciação ventríloqua pela qual ressoa a música do Universo.

Ao isolarmos uma palavra num complexo frásico, surpreende-se o que nela resiste enquanto musicalidade festiva, aspereza rugosa, um certo enlevo sensual. Quantas vezes o maior prazer na leitura decorre simplesmente de ver escritas certas palavras rasas, palavras tão inexcedivelmente mundanas, de um viço livremente daninho, que julgamos tratar-se da primeira vez que as surpreendemos à flor impressa de uma página: «átomo», «goivo», «bafo», «morango», «embaçada». Mostram-se estrangeiras na familiaridade da língua, de uma eriçada aspereza, ladeando o insólito de vocábulos como «metempsicose», «paralaxe», «enteléquia», «propinquidade». Em vez de meios destinados a um fim – o fim lógico-semântico, o fim comunicacional –, as palavras constituem-se a si mesmas, por instantes, e apenas por instantes, enquanto fins, mas numa intransitividade oblíqua. A surpresa de as lermos oferece-se renitente. De súbito, apanha-se desprevenido com um «tornozelo» grafado na página, e duvidamos nesse instante do seu exacto paradeiro anatómico. O fragor de evidência que a palavra circunscreve detém-nos os olhos. E, por sua vez, o concreto esplende pelo que a sua evidência congrega em termos de enigmaticidade – por estar ao abrigo das nossas idealizações, dos usos ingenuamente literalistas que possamos engendrar sempre que, nomeando um vidro, um melro ou um trevo, julguemos conhecer – e, por isso, possuir – as coisas nomeadas.

 

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Cesário Verde, por exemplo, com os ácidos e os gumes, o boiar de aromas e fumos de cozinha. Ou poetas como António Reis, Irene Lisboa ou Raul de Carvalho. Deste último, a captura de fios caudalosos de instantes pontilhando uma devoção à matéria do mundo: «Uma simples pedra, um risco de acaso, uma urze do monte cujo pé e folhas nós colhemos e pusemos ali, desta maneira» (Poemas Inactuais, 1971). Ou, ainda, os momentos de retenção angulosa, pregueada, na escrita de Rui Nunes, quando o olhar míope do autor se detém perante o que é «ínfimo, pobre, escondido» (Barro, p. 59), muitas vezes soletrando as palavras e desconjuntando as matérias para iluminar, na sofreguidão do que vê, «outro mundo no mundo, outras coisas nas coisas» (p. 19). E ainda – para afastar conclusões imprevidentes quanto a servirem estes nomes como exemplos de um realismo mais bem-sucedido do que outros, quando o que importa aqui vingar é o princípio de que toda a escrita digna de o ser é escrita realista (porque acrescenta real ao real e está pregnante de realidade que aspira a tornar-se coisa entre as coisas) – autores como Bruno Schulz em As Lojas de Canela, Max Blecher em Ocorrências da Realidade Imediata e, porque não?, José Saramago nas melhores páginas de Memorial do Convento ou A Caverna.

(A ternura imensa do Rui pelo Saramago. Lembro-me de quando me contou por telefone, já não sei bem a que propósito, que o Rui fora assistir à apresentação do Evangelho segundo Jesus Cristo e agradecera a Saramago a imagem muito nítida, muito vívida, de José erguendo-se da cama a meio da noite, quando o anjo aparece, para ir mijar. Aquilo é o meu avô, disse-me o Rui. Todos os avós que viviam no campo levantavam-se a meio da noite e mijavam assim, como o José do presépio.)

Mas nada disto, parecendo óbvio, é assim tão simples. Não me passa pela cabeça querer exsicar a linguagem poética do resto do mundo, embrulhando-a numa película de plástico, vestindo-lhe um fato impermeável. Como se traçasse divisórias, embora instáveis, entre as resoluções verbais que exacerbem o seu efeito de oficina e os artefactos linguísticos com uma disposição mais relacional. O Ulisses de Joyce deverá, sem dúvida, uma parte considerável da sua fama a este jogo tensional: uma parte de fascinação inexcedível, idêntica à que suscitam os mitos; mas também uma parte de intimidação. Uma parte consciente da sua prolixidade hermenêutica (os múltiplos fios que Joyce entretece na malha de Ulisses, como a Odisseia, os evangelhos, a Divina Comédia, o Hamlet); mas também uma parte saudavelmente ingénua, que sorri com um sorriso gratuito e convive, sem dramas, numa vizinhança solidária com aquilo que é incerto, obtuso e desconhecido.

 

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À boleia do entendimento que Declan Kibert e Kevin Birmingham fazem de Ulisses, a grelha esquemática de correspondências entre o livro de Joyce e o poema de Homero, por exemplo (enviada por Joyce a um par de leitores mais treinados), tende a funcionar como um presente envenenado: redobra no leitor a sensação de estar sempre em falta perante o avolumar de pistas, símbolos, pormenores diamantinos que desconhece serem ou não preciosos. Contribui para espessar a neblina à volta do mito, o livro de que todos ouviram falar mas quase ninguém leu: um silêncio encafuado de vozes rarefeitas, o baque indefectível de ser Ulisses um «som sem eco» (Rui Nunes, Barro, p. 52).

Mas Ulisses é a afirmação jubilante de todos os contrastes, de todas as contradições insanavelmente humanas – e, por isso, como uma mesa ampla com inumeráveis cadeiras, dá espaço quer aos espeleólogos do sentido, quer aos turistas acidentais. Que os primeiros se desunhem com a «inelutável modalidade do visível» (episódio «Proteu»), ou com a teoria do fantasma no Hamlet (episódio «Cila e Caríbdis»), não invalida nem diminui o prazer deslizante dos segundos quando se deparam com «o sabor a chulé do queijo verde» (p. 182) e, quase no fim, «a árvoreceleste de estrelas […] com húmidos frutos azulnoite» (p. 641) pairando sobre Dedalus e Bloom. Ulisses continua a ser um livro a que se regressa, a que é forçoso regressar-se, se o que nele se procura é o tumulto da incerteza, o sentido de humor duvidoso, o reflexo amotinado da pequena vida que passa. O apego ao concreto é tão mais intenso quanto mais generoso é o convite à imaginação.

 

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[epifanias]

 

Michael Ondaatje: «No escuro, na claridade que resta depois do crepúsculo, quando se abre uma veia o sangue sai negro.» (O Doente Inglês, p. 68).

Gary J. Shipley: «Devo ser o único que ainda toma notas. / Escrevo o cenário do fim do mundo para acabar com todos os cenários do fim do mundo.» (Mutações, p. 53).

Joyce: «Lembras-te das tuas epifanias em verdes folhas ovais, profundamente profundas, exemplares para serem enviados se morresses a todas as grandes bibliotecas do mundo, incluindo Alexandria? Alguém as haveria de ler ali alguns milhares de anos depois, um mahamanvantara.» (Ulisses, pp. 46-7).

 

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Joyce brincava com a ideia de manter os académicos entretidos com o Ulisses durante séculos, discutindo entre si as pistas em sinal contrário, a urdidura movediça entre subterrâneas e liminares correspondências. Em simultâneo, segundo Kevin Birmingham, ao invés de escrever um livro destinado a um milhão de leitores, Joyce cobiçava um único leitor que lesse Ulisses um milhão de vezes. O leitor ideal devotar-lhe-ia a vida inteira. A metáfora religiosa não é um exagero; tal como não é exagerado o amor por outra pessoa enquanto religião suprema. Ulisses, no fundo, é uma carta de amor que, num único movimento, eterniza o primeiro encontro amoroso entre Joyce e Nora e transcende a feição irredutível dessa circunstância biográfica, tornando prismático o dia 16 de Junho de 1904. Fazendo-o irradiar, como um fractal, todas as luzes da História. Não somos apenas contemporâneos desse amor: como leitores de Ulisses, Joyce também nos toma por seus amantes (cf. Birmingham, The Most Dangerous Book, p. 143).

Dou por mim – e estou a léguas de me ver como um joyceano – a reler pela terceira vez o Ulisses. Confronto os primeiros sublinhados, as inscrições a lápis de hipóteses tímidas, erros grosseiros, súmulas demasiado vagas anotadas à margem. Com o tempo, somei ao que tinha anotações mais bojudas, reptos críticos de sumidades na matéria, as palavras de Joyce na língua original. Mas nada se compara ao garrular desmedido que me desponta o Ulisses enquanto estou ao volante e, a propósito de nada, este nada se pulveriza no tremular simultâneo do pé ao fazer o ponto de embraiagem, do semáforo que muda de vermelho para verde, do loop na canção que passa entretanto na rádio. O vórtice do que é simultâneo transforma banalidades e automatismos em anomalias e interrupções. Encrespa e desengonça o que por hábito se vive como o fluir da inconsciência. Acontece-me o mesmo enquanto ando a pé; como se o destino de tudo aquilo por que passo – árvores, luzes, caras – fosse ser canibalizado por um imenso texto que vai sendo escrito na minha cabeça. São estas as «cócegas no cérebro» (p. 46) que a serendipidade provoca quando tudo o que é real, ou tudo simplesmente, se epifaniza.

Há, por um lado, uma inegável adrenalina ao munir-me de um livro indiscernível do seu mito, da aura olímpica que institui a leitura como um baptismo de fogo. Conhece-se pela rama o núcleo duro da intriga, a migração de Stephen na produção literária de Joyce, a memória de ter lido, anos antes, O Retrato do Artista Enquanto Jovem e de me terem fascinado nele as intensas discussões teológicas. Preexiste, no correr das páginas de Ulisses, uma ossatura latente à qual o leitor, com incauta subtileza demiúrgica, insufla um pouco de vida, alguma massa corporal que ajuda a tornar mais tangível a qualidade erradia do texto.

Mas, por outro lado, a ansiedade de tudo compreender no Ulisses esbarra contra múltiplas crises, umas atrás das outras. Ao fim de episódios mais esdrúxulos – a parte final da «Telemaquia», a leitura de Hamlet na Biblioteca Municipal, a alucinação expressionista no bordel de «Circe» –, um leitor destreinado sente que desmaia no interior da lucidez, vagamente atónito. A audácia estilística, na sua diversidade, parece por momentos tornar-se mais alienante do que surpreendente. No entanto, tudo compreender é a tendência crónica de Stephen, paralisando-o; Bloom existe como o esplendor movente do instinto, o abrir caminho por entre os pingos de chuva, a coragem discreta dos mais sensíveis.

Nem tudo faz sentido, mas nem tudo exige que faça sentido. Pois que sentido? A beleza, ainda assim, parece luzir entrementes, no amigável desespero com que se lança esta questão, tão pueril quanto pré-socrática. Andamos um dia inteiro com um sabonete a melar-nos o bolso; é de admirar que o sabonete ganhe voz e com ela nos cante na antecâmara dos sonhos, «difundindo luz e perfume» (Ulisses, p. 447)? O sentido é o corpo poder boiar à tona do banho, como «uma lânguida flor flutuante» (p. 93). É um aroma que acidula, a memória humedecida por um renque de ervas esmagadas onde nos deitámos com alguém, amorosamente. O sentido esplende por sermos corpos, estes corpos – e à distância de cento e dois anos, quando a coragem de Sylvia Beach permitira a Ulisses vir a lume, em Paris, com o selo editorial da Shakespeare & Company, será certamente muito fácil obnubilar o escândalo que Joyce provocou por ter afirmado por extenso semelhante evidência física. Esquecemo-nos do crime de promoção do vício e de atentado ao pudor de que Joyce e os editores foram acusados, à época de 1922, por textualizarem a matéria fecal, os gases intestinais, a sugestão erótica, a mancha húmida de esperma, a mente desbocada de Molly, a escrita enquanto pulsão desejante, orgasmo cósmico, «Yes».

 

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Ao mesmo tempo, se é fácil esquecer a luta política encetada por Ulisses em nome da liberdade de expressão contra todas as cláusulas censórias e empáfias moralistas, também não é difícil perceber que a evidência do corpo já não esplende com o mesmo fragor, à escala da ubiquidade digital e do presentismo que nos rege. O que resta, então, daquela corporeidade senciente? Quão sensíveis ainda somos à mistura de sementes e saliva que passa, num beijo desafogado, pela boca dos amantes Molly e Bloom (cf. Ulisses, pp. 184-5 e 729)? Como reage a corporeidade aplanada, exsicada, das constelações digitais à corporeidade difusa, angulosa, imperfeita de Ulisses? Um livro tão vibrante na afirmação das suas impurezas, no rizoma das suas vacilações, colide de certo modo com o apogeu neoliberal da eficácia, com a descorporização até ao sem atrito da transparência, com a excitabilidade virtual sem memória nem volúpia, nivelando e formatando arestas, dissensos, perfis. Um livro que decorre essencialmente nas ruas, aberto ao encontro comunal entre corpos e a uma ternura desprotegida, contraria a seu modo o actual individualismo alienado, a terraplanagem das alteridades, o devir algorítmico de cada um, transformado em banco de dados e enchendo os bolsos às multinacionais.

Por último, um livro como Ulisses requer tempo, a paciência com que ao tempo se dá tempo, libertando-o dos seus gonzos; mas a financeirização actual da vida, em todos os seus aspectos, da arte à sensibilidade, tem por objectivo capital extinguir o próprio tempo, instaurando uma modalidade de existência, ou de existência póstuma, sem nós. Quanto a isto, escrevo à luz, por exemplo, de Bernard Stiegler em Da Miséria Simbólica (2018); de André Barata em O Desligamento do Mundo (2020); de Tomás Maia em Vida a Crédito (2022); ou Jonathan Crary em Terra Queimada (2023).

No fundo, se ainda nos reconhecemos como corpos mortais e máquinas desejantes, se ainda não cedemos por inteiro ao acinzar da infelicidade, como fazer reverberar aquele «Yes» final no monólogo de Molly – sensorial, inexcedível, pujante de vida como a humidade da Terra – sem que o submetamos ao regime de coalescência indiferenciada do ubíquo «sim» digital, sem bordos nem margens, sem aroma nem espessura?

 

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Isto é tão bonito, Rui: «uma ave voa medonhamente baixo e vagarosa; o homem estende o braço como se a quisesse apanhar; desiste, quando ela já estava ao alcance da mão; vê-a tão livre como no início» (O Mensageiro Diferido, p. 99). Pergunto-me se era Kant que o Rui tinha em mente quando anteviu este voo. Pergunto-me se foi da aridez kantiana, nada literária, que o Rui fez libertar a impossibilidade de uma pomba voando no vazio.

 

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William Faulkner: «The two great men in my time were Mann and Joyce. You should approach Joyce’s Ulysses as the illiterate Baptist preacher approaches the Old Testament: with faith.» (Entrevista concedida a Jean Stein, The Paris Review, 1956).

 

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O épico da banalidade fulgura no pó dos caminhos e na água chilra. Levar uma existência falivelmente humana, aguentando a violência inesperada que irrompe de um sem-fim de contingências, constitui-se desde logo como vontade de poder. Escrevo isto e vem-me à cabeça uma dessas frases insipidamente feitas, o tipo de coisas que nos sai pelas goelas quando nos deixamos seduzir pelo som da nossa voz, ao invés de nos mantermos calados: coisas medonhas como tens de sair da tua zona de conforto. Disseram-me isto há dias, num jantar de amigos: estávamos à mesa, cada um partilhando a respectiva última grande novidade das suas vidas. Um amigo, todo empolgado, contava como se tinha finalmente despedido de um emprego que o moía por dentro há mais de uma década; e todos nós brindávamos à sua história, felizes desse suave egoísmo que é o da felicidade em comum, numa mesa para seis, comendo marisco, passando uns aos outros a cesta do pão, a toalha encardindo ao encher-se de cascas, camarões decepados, rodilhos de bigodes, conchas vazias. E eis que alguém, no seu jeito prático de dizer o mundo e, dizendo-o, reivindicar nele o seu domínio, profere a expressão há que sair da nossa zona de conforto, Dogas – e continuou a mastigar.

Fiquei ali retido uns instantes, com meio sorriso na cara, caindo a pique no chão mais íngreme de mim. Mas qual nossa zona, qual conforto, qual quê? De súbito, vem tudo desaguar na Odisseia, nas inumeráveis águas de Ulisses. E parte da minha breve fúria secreta face àquele chavão deve muito à crescente cumplicidade que venho estreitando com as vidas de Leopold e Marion Bloom, a vida de Stephen Dedalus, assim como a vida anónima e ignorada que floresce nos interstícios da escrita do Rui. Quer dizer: não está um qualquer motorista de táxi a sair da sua zona de conforto a cada manhã que nasce, de cada vez que liga a ignição do carro e se lança ao inesperado das ruas? Não é precisamente isso o que move a escrita de Joyce – o trazer a lume em plena luz do dia a coragem (mas que não se nomeia como tal) de quem sobrevive a si próprio, às múltiplas variações de si mesmo, descascando batatas, servindo à mesa, dando aulas, dando a mão para cuidar dos vivos? Trazer todos os dias um peso de chumbo na barriga, enganar as lágrimas com os pingos da chuva – e seguir adiante, um dia de cada vez, dando tempo ao tempo. Coisas tão simples, tão fatais.

Naquela quinta-feira do mês de Junho de 1904, Bloom não faz outra coisa senão sair da sua zona de conforto. Vagueia pela baía de Dublin, compra o rim de porco, auxilia um cego na rua, faz contas à vida. Entrando e saindo de cafés, tolera estoicamente insultos e ameaças anti-semitas no bar de Kiernan com a dignidade de um místico; é-lhe mais fácil infligir a si mesmo os efeitos da sua crueldade imaginária do que fazê-lo àquela horda de comensais ostensivamente ávidos de sangue. Na verdade, há que ser rigoroso nos termos: não há para Bloom, nem sequer sob o telhado da própria casa, a paz provisória das zonas de conforto. Como sinédoque do mundo, Dublin está repleta essencialmente de zonas de confronto, colocando na visibilidade das margens aqueles que a sociedade elege como alvos: judeus, palestinianos, negros, gays, mulheres, ciganos – o sono da razão acorda sempre para a vida nua de um qualquer monstro a abater. Acorda sempre para tácitos acordos, nos seus desabafos de tasca, ao considerar, por exemplo, como «[…] um acto de misericórdia divina pegar num fulano como esse [Bloom] e atirá-lo ao maldito mar. Homicídio justificável, eis o que seria.» (Ulisses, p. 348). E, mesmo assim, à revelia de tudo, eis o que diz Bloom aos pretensos inimigos: «Perseguição – diz ele – toda a história do mundo está cheia dela. Perpetuando o ódio nacional entre as nações» (idem, p. 341); e, pouco depois:

 

– Mas não vale de nada – diz ele. – Força, ódio, história, tudo isso. Isso não é vida para homens e mulheres, insultos e ódio. E toda a gente sabe que precisamente o oposto disso é que é a verdadeira vida.
– O quê? – diz Alf.
– Amor – diz Bloom. – Quero dizer o contrário do ódio. Agora tenho de ir […].
(idem, 343).

 

Mãos menos hábeis tenderiam a aveludar este diálogo, exacerbando-lhe o sentimentalismo, a melosa pieguice. Mas a questão é mesmo essa: num livro tão monstruoso como este, Joyce não teme fraquejar pela boca de Bloom, porque é sensível à veemência das verdades atemporais, as mesmas que afligiam e consolavam esses homens e mulheres na Ilíada, na Odisseia ou no Épico de Gilgamesh. Num contexto tão hostil, e que os brandos costumes ajudam a temperar, Joyce oferece um instante integrador, ainda que brevíssimo, a esta resolução axiológica de Bloom verdadeiramente incorruptível, e por isso corajosa, num colosso de 700 e tal páginas. Pela boca de um angariador de publicidade que não tem onde cair morto, Joyce faz ressoar um rumor de vento primitivo, a sabedoria ancestral que persiste sem origem, em qualquer canto do globo onde existir humanamente signifique o mesmo que perseverar, exercitar-se, transcender-se em vida para despistar a morte (cf. Sloterdijk, 2018). Como não ler nesta jogada, na audácia de dizer «amor» por extenso na praça pública, um dos modos mais excelsos e mais subtis de alguém sair da sua zona de conforto? Bloom não é menos do que Jesus, aqui, mostrando como se dá a outra face. Indiferente à relutância daquele grupo de gentios, imunes à conversão pelo amor.

Afinal, como já antes o dissera Stephen na sua abordagem do Hamlet: «Os movimentos que operam revoluções no mundo nascem dos sonhos e visões no coração de um camponês na falda de um monte. […] O ar rarefeito da academia e a arena produzem o romance de seis xelins, a canção de variedades, França produz a mais fina flor de corrupção com Mallarmé mas a vida desejável é revelada apenas aos pobres de coração, a vida dos feácios de Homero.» (p. 196).

 

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As sobrevivências de Homero numa Dublin moderna não conduzem necessariamente a um reencantamento mágico do mundo – a não ser que pretendêssemos sugerir que o direito à ingenuidade ou o direito à inocência são hoje tão dignos e urgentes quanto o direito à habitação e o direito a não morrer de fome na era do turismo espacial. Há muito que se tornara indesmentível o vento glacial ressoando nas grutas da clarividência. Resta-nos, por isso, afinar melhor os termos, aceitar determinadas derrotas; reconhecer, inclusive, como um triunfo o engolir em seco, o murro no estômago, a dobrada fria, se com essas mazelas atestamos ao menos que ainda temos pulso, cedendo à obscura confirmação de estarmos vivos (Rui Nunes). Mas não fiquemos somente pelo cesto das esmolas ou pelos prémios de consolação. Há que redobrar a escuta atenta, por exemplo, a propostas como as de Peter Sloterdijk, que nos aponta para o luxo do nosso copo meio cheio sempre que acedemos a «meia transcendência» no regime existencial de experimentação contínua; ou sempre que um autor mergulha, em instantes vagamente numinosos, «nos êxtases cinzentos da actualidade normal» ou nas «epifanias da normalidade», porquanto, sublinha Sloterdijk, «a normalidade é o estado de excepção» (Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária, 2001, p. 121). No seu entender, como filhos da Modernidade, vivemos inescapavelmente «num horizonte mitológico», que é o efeito irradiado por vivermos num «mundo sem surpresa» (p. 15). Deixámos de ser herdeiros de fecundas tradições históricas, de amplas linhagens de princípios e valores que, de geração em geração, ajudavam a limar moralmente as arestas mais bicudas da imprevisibilidade do mundo. Ora, «uma cultura que diviniza o presente como a nossa alimenta-se de temas intemporais que faz circular nos seus média. As nossas stories funcionam exactamente como mitos, mesmo as notícias trazem sempre os mesmos temas, os mesmos acidentes, uma quantidade de cenas primitivas sob a aparência de novidade. O mito é um método que descreve o mundo de tal maneira que nele nada de novo se passa» (ibidem).

 

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E isto é uma boa notícia. Uma vez declarada a impostura invariante dos grandes -ismos abstractos, podemos despertar um pouco mais para os gradientes inumeráveis da existência concreta. Que as pedras sejam pedras, que o brilho encurve num tampo de madeira – eis um duo de prodígios elementares. Joyce pôs em relevo o ângulo morto pelo qual uma atenção desperta para o seu próprio estado de vigília. A esse nível, não há reencantamentos, mas tão-só encantos que um olhar mais sensível ajuda a decalcar. Repare-se na sensibilidade de Leopold Bloom, na sua propensão animista. Bloom entende-se com a gata, a gata mia-lhe em resposta: «Entendem o que dizemos melhor do que nós os entendemos» (Ulisses, p. 61). Na redação do jornal, circulando entre o vento das notícias, as onomatopeias ajudam a fulgurar a consciência secreta das prensas mecânicas e das portas:

 

 

«Sllt. A plataforma inferior da primeira máquina projectou em frente no seu tabuleiro com sllt a primeira fornada de um caderno de folhas dobradas. Sllt. Quase humana a maneira de sllt chamar a atenção. Fazendo todo o possível para falar. Aquela porta também sllt a ranger, pedindo para ser fechada. Todas as coisas falam à sua maneira. Sllt.» (p. 129).

 

E acrescente-se, por fim, no episódio «Ítaca», quando Bloom está de volta a casa, em Eccles Street, o pormenor enigmático «de um estalido breve agudo inesperado […] emitido pela tensão dos veios do material inanimado de uma mesa de madeira» (p. 672).

Bloom existe e germina como um tufo de erva: está entre as coisas, nunca acima delas. Promove uma inadvertida e solidária vizinhança com os que são sempre estranhos de passagem, com os objectos do sótão, com a gata ou as gaivotas, com os infindáveis matizes, vividos sem drama, da inelutável modalidade do visível. Ou do vivível, na sua iridescência, despertando o homem para a súbita alegria de haver sempre no mundo algo de novo para aprender – e assim no mundo, na sua radicalidade exterior, como também nele próprio, no corpo físico que só por ingenuidade apressada, herdeira de um cartesianismo tosco, alguém ousaria dizer que conhece total e orgulhosamente.

(Pense-se em Bloom a ler o jornal na retrete, ou, no episódio das «Sereias», pense-se na sua contribuição musical à base de «um súbito suave fuii fuiinho pifarinho ventinho», p. 299. Nos dois casos, Bloom está perfeitamente à vontade com as diligências orgânicas do corpo, com a realidade das suas fezes e flatulências. Na esteira de Sloterdijk, Bloom seria um parente longínquo de Diógenes de Sínope, o mendigo filósofo: é alguém que está ao abrigo «de se afogar um dia na própria merda», uma vez que, enquanto filósofo kínico, «é alguém que não sente nojo», «aparentado com as crianças que não sabem ainda nada da negatividade dos seus excrementos», Crítica da Razão Cínica, 2011, pp. 203-4.)

A orla pulsátil que permeia a matéria é motivo de fascinação para cubistas e surrealistas. Seja pela incidência nos aspectos formais das artes primitivas (o interesse de Picasso pelas máscaras africanas, por exemplo). Seja pela intuição de haver um inconsciente nas coisas, um silêncio rumoroso que as põem em contacto permanente com todos os tempos e todas as civilizações, pretéritas e futuras (Cesariny alegava não estar «obrigado a viver no século XX», bastando uma ida a um país árabe para acordar «no século XVI». De resto, assegura, «[em] cada ser com quem a gente fala, que nós conhecemos, nós somos todas as épocas»). E saindo por instantes das sensibilidades estéticas e místicas contemporâneas de Joyce: como não apreender nos séculos predecessores a tradição pictórica das vanitas, das naturezas-mortas com verduras comezinhas e minerais opulentes? No entrançado de um cesto, na cera derretida, num quilo de espargos, retém-se o gesto prazeroso de elevar minudências num lugar-comum à plena dignidade de um evento.

 

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Há um poema de Ruy Belo que começa pelo verso «Somos seres olhados». O que nós vemos, o que nos olha (um título de Didi-Huberman). Joyce relevou na escrita literária o vitalismo secreto das coisas materiais. De facto, a criação de Ulisses é também a reacção de Joyce à rarefacção crescente do mundo, em particular o mundo filtrado pela imprensa. Joyce percebera a velocidade a que a esta evoluía, o destino evanescente a que os factos noticiosos estavam condenados. Note-se no reparo feito por Bloom quando folheia, na retrete, «um número antigo do Titbits»: «Agora imprime-se qualquer coisa. Época frívola» (Ulisses, p. 75) – observação a que sucede o movimento de rasgar a folha pela metade para com ela limpar o cu. Ciente desta feição descartável, Joyce invade o Ulisses com situações de emperramento, esparge areia nas engrenagens, compelindo o leitor a serenar o ritmo. Isto é muito claro no episódio «Éolo»: o uso de manchetes jornalísticas perfura e desalinha a sequenciação textual, instiga o leitor a reparar no seu estado de perplexidade e confusão. Ao mesmo tempo, segundo Declan Kiberd, desfere um ataque subtil à inevitabilidade jornalística fundada na reprodução automática de «clichés» – um ataque extensível à própria técnica literária de Ulisses, que o autor não queria ver anquilosada:

 

«With astonishing audacity, Joyce, having perfected his own technique of interior monologue in the early parts of the book, is now issuing a warning, lest it too lapse into just another institution of literature, defined as much by what it excludes as by what it includes. The fear, quite simply, is that his own style will become ‘Joycean’, as live form degenerates into dead formula. On guard against past masters from the outset, he may be growing suspicious of his own mastery» (Ulysses and Us. The Art of Everyday Living, 2009, p. 119).

 

Por isso, finaliza Kiberd,

 

«each episode in the single text called Ulysses is quite different from all others. No style achieved could ever be ‘final’ or ‘official’. In constantly changing, modern art had something in common with the successive editions of a daily paper, each one replacing the previous one (much as the latest edition of the text of Ulysses keeps replacing its predecessors).» (ibidem).

 

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[epifanias]

 

Benjamin Fondane: «[…] Se eu pudesse amar-te-ia como uma irmã / ajudar-te-ia a atravessar as zonas desumanas / – de mão dada.» (Ulisses, p. 24).

Derek Walcott: «[…] Ele chegou ao ponto / de aprender que a História adquire a sua própria ternura / com o tempo» (Omeros, p. 138)

Rui Nunes: «breves como somos, em cada momento algo cintila para morrer» (O Mensageiro Diferido, p. 32).

 

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À volta do episódio «Nausícaa». A jovem Gerty, estirada num rochedo ao pé do mar, ao sentir-se cobiçada pelos olhos tristes de Bloom, começa a levantar as saias, a desvelar um pouco da roupa íntima, numa lenta provocação. Bloom cede ao desejo, à gula dos dedos metidos nas calças, e masturba-se ali mesmo, junto ao paredão, na praia de Sandymount. Pequenos morcegos assistem à cena, rodeando os sinos de uma igreja próxima, as ondas do mar ao sol-pôr compondo um enlevo amiúde inebriante, na ressaca de secretas utopias, as de Gerty e as de Bloom, a jovem sem amante e o homem encornado.

Num livro como este, que exige tanto do leitor, o episódio de Gerty afigura-se surpreendentemente simples. Funciona como uma recompensa oferecida a Bloom pelo dia agitado que vivera, desde os périplos de manhã com a compra do rim de porco, mais o funeral de Dignam, o despistar-se de Boylan, a ponderação estética quanto às chaves em cruz para o anúncio no jornal, mais as afrontas anti-semitas ao cair da tarde. Sem esquecer a infidelidade de Molly, de que Bloom esteve sempre a par. Talvez a consolação se disfarce de vingança imaginária contra a facticidade do adultério, e a figura de Gerty só exista, de facto, na cabeça de Bloom: afinal, em que consiste o retrato de Gerty senão num inventário de clichês sobre o eterno feminino, um objecto tipicamente subjectivizado pela visão falocêntrica? Os devaneios de miúda virgem sobre ansiedade amorosa e príncipes encantados são subprodutos da publicidade a artigos de beleza e dos folhetins romanescos, um mercado inventado por homens como Bloom que se destina a clientes do sexo feminino. Ao fim, a presença solícita de Gerty equivale a um fetiche puramente machista…

Mas importa não reduzir tudo ao psicologismo. Joyce é um criador astucioso, como o rei de Ítaca. Quaisquer afunilamentos imaginantes ou interpretativos contradizem um texto tão movediço como o de UIisses. Há sempre nuances, há sempre esquivas – como as palavras que Bloom escreve na areia com um pau, mas deixa incompletas, abandonadas ao capricho das ondas: «EU. / […] SOU. UM. / Não há espaço. Deixa estar. / O Sr. Bloom apagou as letras com a sua bota lenta. Coisa desesperante a areia. Nela nada cresce. Tudo murcha.» (Ulisses, p. 392).

O direito ao segredo é inalienável do direito a dizer tudo, que é a definição de literatura segundo Derrida. Salta-se entre o corpo escrevente e a vida do texto, saltos suspensivos na orla da indefinição, da mistura imperfeita, do inacabado que impede o sentido de coagular, porque o impele a abrir-se irradiante. É preciso imaginar a experiência de leitura, à luz de Eduardo Lourenço, como quem joga à cabra-cega mas de olhos abertos: tomando a transparência como um reforço de opacidade, e não o seu momento enfraquecido. Um outro Eduardo, agora Prado Coelho, acabaria por convergir no imo desta imagem ao defender «o risco da obscuridade e da ilegibilidade» em detrimento do «conforto da acessibilidade»: «Feitas as contas», conclui o ensaísta, «foi sempre a obscuridade que venceu» (Tudo o que não escrevi, 1992, p. 17). Perdura na evidência algo de obscuro, vitalmente obscuro: afinal, o que é a claridade de um corpo senão a claridade do esqueleto, os ossos esburgados como a derradeira astúcia do inferno da carne contra a insaciedade dos vermes? De igual modo, um texto é a sua mesma vacilação (um poema não pode aspirar a ser mais do que isso, diz Rui Nunes); e, em sentido contrário, a clareza de um texto é a sua morte, o corpo dissecado na banca metálica, a aridez inane do que não tem peso nem sombra.

Joguemos, então, à cabra-cega, mas sem vendar os olhos. O que vemos, o que nos olha? Bloom e Gerty: ali os dois, à distância, numa comunhão triunfal, fazem a vez de ventríloquos de todas as possibilidades perdidas, dos enredos amorosos secretamente urdidos. Dão forma à vertigem que é o desejo, flexionado pelo modo verbal do paraíso: e se. E se as coisas pudessem ser aquilo que são e, nessa coincidência absoluta, fossem também o que não são, esplêndidas de univocidade sem mancha nem sombra? E se nos lessem pelo lado avesso da pele, como folhas de acetato que já não revelassem nada senão a própria transparência como o último mistério? E se a isto corresponde o já sermos eternos, o darmos forma à própria eternidade?

 

«[…] E então um foguete subiu e bum estourou cego e Oh! logo a vela romana rebentou e foi como um suspiro de Oh! e todos exclamaram Oh! Oh! em êxtases e jorrou dele uma torrente de fios de cabelo em chuva de oiro e derramaram-se e ah! eram todos estrelas de verdejante orvalho a cair com douradas, Oh tão vívidas! Oh, suaves, doces, suaves!» (Ulisses, p. 376).

 

A seu modo, é a esta nudez que as ficções dão corpo. E, dando-lhes corpo, desfazem-se os mitos da inocência, a candura de osmoses entre nomes e coisas, o ardil da transparência. Remanesce a incerteza, o vestígio queimado que tinge num corpo a sua evidência de luz em ruína (no momento da despedida, Bloom repara que aquela ninfa em idade núbil caminha de forma estranha: «Ela é coxa! Oh!», p. 377). Ter corpo não é sucumbir nem resignar-se à impureza de um baixo materialismo. Ter corpo é afirmar que só no inferno estamos a salvo, que só nos infernos a salvação desponta como horizonte do possível, do paraíso como ficção que só inexistindo existe mais. É isso o desejo, o excesso incolmatável na troca de olhares entre Gerty e Bloom. Isso que neles é mais do que eles próprios, ampliando a vida desmedidamente. O calor húmido entre as coxas, o coração acelerado, a mancha de sémen na camisa: remanescências, intensidades. Mas igualmente silêncios, esconderijos: «Era o segredo deles, só deles, sozinhos no crepúsculo encobridor e não havia ninguém que soubesse ou contasse salvo o pequeno morcego que voava tão suavemente pelo entardecer»… (Ulisses, p. 377).

Quem nada tem a esconder, nada tem a mostrar. No livro The Most Dangerous Book, o autor Kevin Birmingham especula sobre esta possibilidade deliciosa: a de ser Gerty nada menos do que um retrato de Joyce. As pontas soltas, o punhado de enigmas, o desencaixe de certas peças: eis como Joyce transmuta o texto literário num flirt contínuo com o leitor, como iscos num anzol, ou «secrets waiting to be understood» (p. 198). «Será que alguém me entende?» foi, de resto, a questão colocada a Nora quando o casal abandonou a Irlanda. Será que alguém deseja entender-me, isto é, aproximar-se ao que em mim excede a parca compreensão que os nomes conhecidos ofertam? E se as coisas pudessem ser aquilo que são e, nessa coincidência hipotética, fossem igualmente o que não são, esplêndidas de equívocos, manchas, sombras? E se nos lessem pelo lado avesso da pele, como folhas de acetado que revelassem o que a transparência nunca deixou de revelar velando: desejo, horizonte, ficção, o espaço deixado em branco, a gaguez na fala, a testa quente repousando no ombro alheio, a distância infinita entre dois corpos juntos.

 

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29 de Janeiro. Ao telefone com o Rui. À conversa sobre Joyce.

Há um incontornável pormenor fisiológico que é comum aos dois na relação com a escrita: a quase cegueira. Esse risco permanente leva-os a um zoom extenuante do ínfimo, ao exacerbamento do rasteiro. «O homem dobrado sobre a terra soletra o pó», lê-se em Os Olhos de Himmler (2009). Espécie de fixação pela miríade de excedentes minúsculos que não se deixam apanhar, organizar, imiscuir no generalismo asséptico dos grandes conjuntos, essa forma de analgia discursiva. Cada instante que passa relembra a quem vê o facto de ter olhos doentes: «To read Ulysses is to feel time’s dilation», sublinha Kevin Birmingham. «We go so slowly through the characters’ thoughts because even the most painstaking mental contours were something to hold on to. Joyce wrote an epic of the human body partly because it was so challenging for him to get beyond his own body. And yet he did» (The Most Dangerous Book, p. 258).

No entanto, a um nível estrutural, indo ao osso medulante pelo qual cada um destes autores vê os pequenos mundos no mundo, a questão da literatura e do que se faz com ela metaboliza-se de maneira diferente, em circunstâncias distintas. Quer dizer: Ulisses não deixa de se afirmar como o apogeu do romance clássico, não obstante a exuberância aparente da sua fragmentação narrativa ou a montagem impura de estilos, aspectos formais que em tudo o demarcam do romance à século XIX. A ironia joyceana reside no manuseio prazeroso desses fragmentos e impurezas, quando o livro, de facto, não deixa de ter como estrutura de fundo a duração desenvolta de um dia; e não deixa de apelar, assim, a uma certa ideia de unidade. À imagem de uma corrida de estafetas, Ulisses dá a mão à história da cultura ocidental, assegura que o lume do archote se mantém aceso, mantendo na órbita do jogo as sombras tutelares de Homero, Dante ou Shakespeare. Cito de memória o que o Rui disse sobre isto: que em Joyce persiste a inactualidade esplendorosa do romance.

Rui Nunes, no entanto, não age sobre o texto com propósitos disruptivos. Não é por deliberação explícita, muito menos por arruaça iconoclástica: não é Rui Nunes quem destrói o texto, é o texto que lhe vem destruído. Nunca experienciou outro tipo de relação com o mundo, desde criança, que não o da descontinuidade, o absoluto desapego perante toda a ordem de coisas, circunstâncias, afectos. A escrita do Rui nasce de bocados, aos bocados, e não de fragmentos – porque se estes não deixam de apelar a uma qualquer promessa de unidade, a uma possibilidade compositiva, já os outros, pelo contrário, se detêm numa solidão inquebrantável, no irredutível do que remanesce sem o consolo da adjacência. O que são as personagens, ou as figuras humanas, aos olhos do Rui senão o estremunhar de «esboços»? O provisório de um coágulo de luz, às vezes: a própria concentração física, dolorosa, da luz que desaparece ao mínimo movimento, para logo depois recomeçar a sua lenta reconstituição molecular. O que há para admirar na subitaneidade e na presença erradia de um «esboço»? Que relações de afecto se pode nutrir com um «esboço» humano?

Não surpreende, assim, o fascínio do Rui pela escrita de Tolstoi: seja pelo fôlego monumental de um épico como Guerra e Paz, seja pelo estertor agónico que uma novela como A Morte de Ivan Ilitch condensa na sua brevidade. Tolstoi é absolutamente impiedoso com as personagens, tratando-as com a algidez e a violência metódicas de um eficiente carrasco. Não descreve a morte enquanto transcendência inacessível; descreve a fisicalidade dos mortos, tanto os mortos empilhados na Batalha de Borodino, como a solidão desgraçada de Ilitch, preso à sua cama como um futuro cadáver confinado ao caixão. O olhar de quem vê é indiscernível do distanciamento cavado entre aquilo que é visto, pondo a nu a exterioridade irredutível em que existem as coisas e os seres.

Pelo contrário, lendo o Ulisses, como não sentir a ternura que Joyce nutre por Stephen, Molly e Bloom, o carinho pelos seus defeitos, pelo festim esplendorosamente humano que celebra em cada um deles as respectivas contradições, malícias, fogos?

 

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Joyce: «Olhando para trás agora numa espécie de quadro retrospectivo, tudo parecia uma espécie de sonho. E regressar era a pior coisa que você alguma vez podia fazer porque nem seria preciso dizer que se sentiria deslocado uma vez que as coisas mudam sempre com o tempo.» (Ulisses, pp. 593-4)

Homero: «Assim falaram entre si, dizendo estas coisas. / E um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.» (Odisseia, canto XVII, 290-1).

 

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André Barata fala em «escafandros»; Hans Belting, em «astronautas». Pondo de lado a especificidade dos respectivos contextos, seja a filosofia de alcance social, seja a antropologia da imagem, retive a força expressiva desse par de metáforas e a provocação que encetam quanto ao corpo que somos no mundo em que estamos. O impasse pós-digital é o de nos acharmos revestidos, dos pés à cabeça, com a espessura sobressaliente e tão insólita desses dois fatos. Sou levado a crer, assim, que a pele, o maior órgão do corpo humano, se vai tornando indiscernível desta outra pele, enquanto película escafândrica ou astronáutica que, levada ao extremo, nos impede de dizer, como dizia Michel Serres, que também pensamos com os pés. Reféns do tipo de mediação que vestimentas tão esdrúxulas nos impõem, não há como evitar a sensação aporética de ou ainda não estarmos no mundo em que estamos, de haver um desfasamento sem cura entre o nosso corpo e a experiência de calcar o chão. Sente-se como infissurável este tempo que nos foge, um tempo que nunca se assemelha a algo que possamos reclamar como verdadeiramente nosso ou como uma extensão da nossa singularidade. Nada do que somos ou do que temos é bastante para que não vejamos esburgado esse nada de sentido que críamos, apesar de tudo, indefectível.

Dou este exemplo, assim a quente, copiando uma notícia do Expresso: «A empresa do criador do chat GTP distribui criptomoedas em troca de uma fotografia à íris, que é mais identificativa de uma pessoa do que a impressão digital. Em Portugal, a Worldcoin já recolheu os dados biométricos de 300 mil pessoas, que fazem fila para receber de forma rápida um valor que pode superar os 100 euros em apenas um dia. Jovens e carenciados são os mais tentados.» (2 de Março de 2024).

Seja qual for a formulação mais ajustada para este tipo de episódios – capitalismo financeiro da vigilância, sociedade da transparência, algoritmização totalitária, ao estilo do Minority Report –, qualquer ímpeto crítico denunciante envelhece demasiado cedo. O futuro já começou; a futuridade, enquanto desejo e pulsão transformativos, enquanto fulgor imaginante, é que parece ter sido extinta. Extingue-se ao eternizar-se num coágulo de luz, sem sombra nem penumbra, sem lugar nem tempo para desconhecer, duvidar. Como se não houvesse, em suma, outro destino para a ideia do humano excepto o plano que o reduz à condição de cliente: no caso da notícia, humano é aquele que (sobre)vive vendendo a íris, fazendo de si mesmo mercadoria. É o extremar progressivo das divisões classistas entre os que ainda se julgam a salvo de inquietações desta ordem e aqueles que, tendo perdido tudo, já não têm mais nada a perder.

Um real hipermedializado derrapa e desliza aquém de nós, como se existíssemos na nossa ausência, protegidos que estamos contra uma exterioridade vivida sob a forma de ameaça: o estrangeiro cuja pele é mais escura, o vírus imiscuído no ar, o silêncio que inspira temor, o vencimento demasiado baixo para o grau irrazoável de codícia, hipotecando a existência e delapidando o mundo. Qualquer noção de real, num sentido liminarmente empírico, parece apenas vivível enquanto défice. Défice de real, de sentido, de mundo.

Escafandros e astronautas, não tocamos, nem somos tocados. Nenhuma experiência ou acontecimento dignos desse nome podem ter e fazer lugar estando sob caução de tamanha armadura e do retesamento formal que o seu uso implica. Que gestos, que movimentos, que respiração? O que deveria ser apanágio de situações-limite, como explorar o fundo dos oceanos ou saltitar na superfície da Lua, parece estender-se às instâncias mais ínfimas e recônditas da coexistência humana, «como se vivêssemos, por antecipação, tempos pós-apocalípticos» (André Barata, Para viver em qualquer mundo, p. 97). Parecemos a personagem do actor Adam Sandler no filme Spaceman (Johan Renck, 2024): envergando, literalmente, um fato de astronauta mas encalhado no meio de um rio, algures na Terra, tão perto e simultaneamente a anos-luz da vegetação em redor, assim como de si próprio e dos medos que recusa encarar.

Não sei como sair disto. Sei que escrevo estas linhas com a sensação de já ter batido nestas mesmas teclas, noutros textos passados, pisando inadvertidamente pegadas alheias. No fundo, este é o meu texto-escafandro: olho para os meus referentes de sentido a partir do fundo oceânico, parcelarmente reconhecíveis mas demasiado embaçados, num estado de hipnose que parece ter saído do imo diáfano da própria realidade. Uma necrópole submersa, pontuada pelo halo mortiço das algas. Respira-se a custo, as mãos e os pés perdem a agilidade natural, as palavras esboroam-se no espessamento da água. Regresso uma e outra vez à angústia de Stephen no início de Ulisses: «Ouço a ruína de todo o espaço, vidro estilhaçado e alvenaria a cair, e o tempo uma lívida chama derradeira. O que nos resta então?» (Ulisses, p. 30). Decalco uma a uma estas impressões dúbias, o estertor de uma guerra longínqua, uma chuva distante de detritos. Um vento gélido parece atravessar aquela meditação de Stephen: «a ruína», o «vidro estilhaçado» ou a «lívida chama» são despojos transversais a todas as guerras, presentes, passadas e futuras. Um mesmo vento, imemorial, anonimiza a brutalidade dos detritos, o desenho amorfo dos escombros, o apodrecimento dos corpos adubando a terra – e, nesse sentido, «a ruína de todo o espaço» consegue amontoar na mesma pilha de destroços, tornando-os contemporâneos, a catástrofe da I Guerra Mundial e o horror da guerra na Ucrânia, os fornos crematórios de Auschwitz e o extermínio do povo palestiniano. O que resta então?

Não sei. Isto. O recomeço desta frase, esta vírgula, a impaciência na ponta humedecida dos dedos. Repito-me, como Rui Nunes, porque qualquer repetição inicia / um pequeno e fascinante desvio. Porque também não sei acabar: sei prolongar o massacre. Procuro não entrever na repetição um sintoma de derrotismo, uma cedência ao desespero e a essa espécie de negrume pessimista que, por vezes, parece desfilar em certos livros como modelo de sofisticação intelectual. Se volto a certas imagens e a determinados autores, se retomo obsessões que a realidade me faz crer serem vívidas partes de um diagnóstico que urge fazer-se, talvez intua haver aí zonas de tensão ainda incógnitas, nuances inapercebidas irrompendo à superfície do que me é mais familiar. É como se nos interstícios das pretensas totalidades, dos acercamentos sem fuga nem alternativas, algo ainda brotasse, na forma de um ténue murmúrio ou de um qualquer lampejo destoante. Algo que se rebela, uma e outra vez, de acordo com o apelo da circunstância, contra o «absolutismo da realidade» (Hans Blumenberg). Porque nada é assim mesmo, nem tudo está definitivamente dito.

Amiúde, a frescura com que certos autores repassam banalidades ditas de base pode ter este efeito instigador, como a chegada de um novo bebé à vida concede à própria vida um assomo de recomeço. Tenho entre mãos, por exemplo, o júbilo fremente destas passagens de Josep Maria Esquirol, no livro A Penúltima Bondade (2023), sobre o acto de pensar, genuína razão de ser do pensamento filosófico: «Que tudo esteja já decidido e passado equivale a que tudo seja o mesmo. O pensamento introduz a alteridade, ou a alternidade entra através do pensamento» (p. 142). Ou: «Tal como demonstra o benjaminiano anjo da história, o nosso pensar – a nossa vida – faz-se solidário com todas as vidas pessoais, que quer resgatar da tirania do mesmo» (p. 143); «o pensar faz-se solidário porque é um verdadeiro infinitivo da vida.» (ibidem). E, por fim, a ideia basal destas passagens: «Todos os números vibram menos o último. Mas o último não existe. Todos os pensamentos são penúltimos. O penúltimo pensamento nunca termina. Na ordem da vida sentida, tudo é penúltimo. O mistério da vida não está na ultimidade da morte, mas na penultimidade da própria vida vivendo-se e pensando-se» (p. 144).

Pensar como um gesto de penultimidade da vida, contra toda a gama de ultimatos e determinações. Pensar – essa vocação involuntária que tenta, uma e outra vez, sondar a feição complexa do que em aparência se afigura simples, tocar na súbita estranheza que escapa à infâmia das homogeneizações. Em suma: pensar como acto de criação. Na biblioteca de Dublin, enquanto Stephen exorciza os seus fantasmas teorizando sobre Hamnet, o filho de Shakespeare que morrera aos 11 anos, Joyce regista como «[u]m homem de génio não comete erros. Os seus erros são deliberados e são os portais de descoberta.» (p. 200). Portais que nos levam, por exemplo, dos 11 anos de vida de Hamnet para os 11 dias da breve existência de Rudy, o bebé de Molly e de Bloom. Ou que nos abrem, na cisão inerente a todo o olhar simultâneo, para os vinte anos de ausência de Ulisses – desde que partira de Ítaca, lutara em Tróia e regressara como estrangeiro ao seu país – e para os vinte anos de ausência de Shakespeare, trabalhando em Londres, ausente da esposa. Portais que tornam mais sensível a distância que vai de Hamlet – o príncipe convulso, versão dramatúrgica do filho morto do bardo se acaso tivesse vivido – ao jovem Dedalus, versão imaginativa do filho morto de Bloom se acaso tivesse chegado à bonita idade da famosa personagem. Palavras, palavras, palavras – urge dizê-las, repeti-las num cântico, fazê-las quebrar a sevícia de um mau silêncio, o gelo do silenciamento, as gramáticas do poder. E urge também lançá-las nos interstícios, numa coexistência absurda entre peso e leveza, entre sentido e fuga, fazendo libertar nas palavras uma feição de imagem que interrompe o discurso, cava buracos, espalha sabores nos saberes. À boleia de Eduarda Neves: «Seria preciso a palavra-grito de Artaud para fazer explodir a sintaxe ou a palavra-silêncio de Beckett para aí inscrevermos o fracasso» (Bestiário Menor, 2022, p. 25).

[Fui comprar O Príncipe Negro da Iris Murdoch para adensar um pouco mais esta deriva. Mas agora tenho de ir.]

 

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Estive com o Rui em Serralves, a meio da semana, no último dia de sol. Entre muitas derivas, enquanto se vai aprendendo a sermos dignos do que nos acontece, falámos de memórias lectivas, alunos que nos comovem só de os recordarmos, ardis inesperados que certas aulas ainda nos pregam. Contei-lhe como, há uma década e picos, já nos cumes do desespero, para que a miudagem do 9.º ano serenasse as hormonas e me deixasse dizer um par de coisas sobre Camões com uns mínimos de substância, servi-me na altura da morte recente do Michael Jackson como um isco: em troca de um pouco sobre Os Lusíadas, gizei um patusco moon-walking a meio da aula. Hossana, ‘cause this is thriller! Os barões assinalados depuseram as armas, e assinei com a Billie Jean um módico tratado de paz. Ainda hoje, se me cruzo na rua com algum desses alunos, é desse disparate que nos lembramos, é isso que nos torna cúmplices.

E o Rui contou-me, por sua vez, que nos primórdios das suas aulas de filosofia, ao sair-lhe na rifa uma turma jeitosa no pico da parvalheira, puxou o lustro ao performer que havia em si para conseguir o necessário silêncio. Sem quaisquer preliminares, sem almofadar a coisa, irrompeu pelo barulho alheio a dizer poesia em todas as línguas que ainda domina: versos de Horácio em latim com versos do Fausto de Goethe, um soneto de Sá de Miranda encavalgado num soneto de Shakespeare, tudo em feroz catadupa, num ritmo maníaco, falando que nem um possesso. Depois, vidrou os olhos no carvalho que existia do lado de fora da janela e começou a descrevê-lo. Aplicou àquela árvore a mesma minúcia furiosa que aplica às coisas nos seus livros, coisas que dão às palavras a sofreguidão de olhos, num desespero penúltimo antes do clarão irreversível da cegueira. Os mânfios pasmaram, borrados de medo. Na aula seguinte, pouco depois do sumário, houve um que se atreveu: Professor, importa-se de repetir aquilo que disse do carvalho?

 

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«Onda de calor. Não vai durar. Sempre a passar, o curso da vida, o que no curso da vida perseguimos é mais querido que tudo o resto.» (Ulisses, p. 93).

 

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Nine, Porto, Castelo Branco – Novembro de 2023 / Maio de 2024

 

Referências

Andresen, Sophia de Mello Breyner, O Nome das Coisas, 4.ª ed., Lisboa, Caminho [1977].

Barata, André, Para viver em qualquer mundo. Nós, os lugares e as coisas, Lisboa, Documenta, 2022.

Belting, Hans, Antropologia da Imagem, trad. Artur Morão, Lisboa, KKYM/EAUM, 2014.

Birmingham, Kevin, The Most Dangerous Book. The Battle for James Joyce’s Ulysses, London, Head of Zeus, 2014.

Cesariny, Mário, «Cesariny: ‘Somos todas as épocas…’», entrevista concedida a Francisco Belard, in AA.VV., Uma Última Pergunta. Entrevistas com Mário Cesariny, Lisboa, Documenta, 2020.

Chiasson, Dan, «“Ulysses” and the moral right to pleasure», The New Yorker, 16 de Junho de 2014, em linha https://www.newyorker.com/books/page-turner/ulysses-and-the-moral-right-to-pleasure [última visualização: 5-6-2024].

Coelho, Eduardo Prado, Tudo o que não escrevi. Diário I (1991-1992), Porto, Asa, 1992.

Esquirol, Josep Maria, A Penúltima Bondade. Ensaio sobre a vida humana, trad. Jorge Melícias, Lisboa, Edições 70, 2023 [2018].

Homero, Odisseia, trad. Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia/BI, 2010 [séc. VIII a.C.].

Joyce, James, Ulisses, 2.ª ed., trad. Jorge Vaz de Carvalho, posfácio de Richard Ellman, Lisboa, Relógio D’Água, 2014 [1922].

Kiberd, Declan, Ulysses and Us. The Art of Everyday Living, London, Faber and Faber, 2010.

Menand, Louis, «Silence, exile, punning», The New Yorker, 25 de Junho de 2012, em linha: https://www.newyorker.com/magazine/2012/07/02/silence-exile-punning [última visualização 5-6-2024].

Neves, Eduarda, Bestiário Menor. Tempo e labirinto na arte contemporânea, Lisboa, Barco Bêbado, 2022.

Nunes, Rui, O Mensageiro Diferido, 2.ª ed., Lisboa, Relógio D’Água, 2004 [1981].
_____, Os Olhos de Himmler, Lisboa, Relógio D’Água, 2009.
_____, Barro, Lisboa, Relógio D’Água, 2012.
_____, Nocturno Europeu, Lisboa, Relógio D’Água, 2014.
_____, O Anjo Camponês, Lisboa, Relógio D’Água, 2020.
_____, Neve, Cão e Lava (Aproximações Assimptóticas), Lisboa, Relógio D’Água, 2023.

O’Hara, Frank, Vinte e cinco poemas à hora do almoço, trad. José Alberto Oliveira, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995.

Shipley, Gary J., Mutações, trad. António Gregório, Lisboa, Barco Bêbado, 2024.

Sloterdijk, Peter, Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária. Um diálogo com Carlos Oliveira, trad. Cristina Peres, Lisboa, Fenda, 2001 [1999].
_____, Crítica da Razão Cínica, trad. Manuel Resende, Lisboa, Relógio D’Água, 2011 [1983].
_____, Tens de Mudar de Vida. Sobre Antropotécnica, trad. Carlos Leite, Lisboa, Relógio D’Água, 2018 [2009].

holds a Ph.D. in Literary Theory. As part of his post-doctoral work, he joined “Rastro, Margem, Clarão”, a project by Terceira Pessoa association, exploring Rui Nunes’s writing. In 2020, he published “Na imprecisa visão do vento” (with Susana Paiva) and a poetry anthology by Raul de Carvalho.

Issue #07
1. Jogo, acaso, crime: notas em torno de um puzzle
2. Além de Mesão Frio
3. ARQUImarivar-TE // Tempo e Espaço
4. spell
5. esmagar, pisar, comprimir é um gesto que demora
6. É boa a terra do lugar-comum: Joyce e Rui Nunes, in medias res
7. I Edição do M’illumino d’immenso – Prêmio Internacional de Tradução de Poesia do Italiano para o Português
8. Os trajes e os corpos
9. Cnidaria (Fragmento)
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