[uma estética onde a sujidade, a destruição e o caos estão muito presentes]
[Miguel Moreira entrevistado por Vítor Ferreira]
Num sábado quente de Maio, o Miguel recebe-me em sua casa, perto do Cais do Sodré. Conhecemo-nos há 2 anos através do projeto pluridisciplinar “Rastro, Margem, Clarão” da Associação Cultural Terceira Pessoa. Partindo da escrita de Rui Nunes, Miguel Moreira e Maria Fonseca desenvolveram Um Lugar sem Coordenadas (que estreou em final de 2020), uma criação híbrida que conjuga diversas formas de expressão artística como o teatro, a dança, a fotografia, a música, o desenho, a literatura.
Após nos cumprimentarmos de forma efusiva, sentamo-nos, disponíveis para uma longa conversa que abordará os mais de trinta anos da carreira artística de Miguel Moreira. Com os seus cabelos longos e um riso contagiante, o Miguel revela uma efusividade sedutora, felina. Mas o seu olhar consegue ser igualmente sério, crítico e muitíssimo atento à contemporaneidade.
Segue-se um registo resumido do nosso diálogo.
Estamos em 2022. O Útero completa 25 anos. Podes falar-me um pouco do que levou à criação da Companhia?
A ideia surgiu em 1994. Eu e o Didier [Fernandes] queríamos fazer um grupo sem questões formais ligadas às estéticas. Quer isto dizer que tanto podia ser dança, teatro, enfim, o que nós achássemos pertinente de acordo com a nossa urgência. O Didier era uma pessoa que desenhava muito bem e tinha várias valências. No fundo, pretendíamos apenas um sítio onde pudéssemos criar de forma livre. Livres de qualquer constrangimento formal.
Infelizmente, o Didier teve um acidente…
Sim, teve um acidente de mota em 1995 e faleceu. O grupo ficou um bocadinho adiado. Em 1997 fiz uma primeira encenação minha num coletivo de Almada, O Grupo. E a partir daí apercebi-me de que seria impossível seguir outra direção. Então decidi, com as pessoas com quem trabalhei nessa peça, criar outro grupo, o Útero.
E como é que foi o processo da primeira criação?
Foi um processo que demorou oito meses. Coincidiu com a Expo. Queríamos sair de um teatro do texto. Eu já vinha do Bando, onde se criava teatro a partir de outros textos como romances ao invés de textos dramatúrgicos. Aliás, eu nunca tive uma relação com o texto, o “bem dito”. Na verdade, nem sequer estava muito preocupado em fazer teatro, queria era inventar uma expressão artística que fosse de acordo com aquilo que nós eramos. Ainda hoje, a minha ideia de banda mantém-se. Isto tem um som. No dia em que não se conseguir produzir este som, não faz sentido continuar a chamar-se Útero. O Útero é um espaço muito familiar. Aliás, o Didier era o meu melhor amigo. Eu crio sempre com muita intimidade.
Homem do teatro, da performance, da dança… Ator, encenador, bailarino, coreógrafo e muito mais. Afinal quem é o Miguel Moreira? Essa definição é algo que te interessa?
Eu costumo sempre dizer que sou artista. Porque há da minha parte uma preocupação em reivindicar o teatro como um lugar de pensamento, de arte. Algumas pessoas acham arrogante dizeres que és artista. Não sei bem porquê, nunca percebi. Bom, talvez esteja relacionado com uma falsa ideia de humildade. Para seres humilde parece que não podes afirmar nada.
E ainda hoje sentes isso?
Sim. Portugal teve uma ditadura longa, um período em que não podias dizer o que te apetecia. Mas isso não se apagou totalmente. Há uma ideia de conveniência, certas coisas ainda são inconvenientes. Felizmente, o Útero nunca se preocupou em ser conveniente. Às vezes diziam-me “Tu não és daqui”. Sempre houve um lado estrangeiro no Útero, o que me agrada muito.
Sentias, portanto, uma suspeita em relação ao teu trabalho?
Sim, principalmente da malta do teatro “bem dito”. Como se para seres considerado encenador precisasses de trabalhar a partir de Shakespeare, Brecht ou Beckett. Como se os autores não estivessem ligados a nós por uma questão urgente e emocional, mas estivessem ligados só por uma questão de aparência ou moda. Também havia um grupo muito forte, que era a Cornucópia, em que toda a gente vinha da Universidade. Eu fiz todo um caminho oposto a esse. Não venho da Universidade, não venho do centro. Venho do subúrbio e isso sente-se.
E como é que surgiu o interesse pela arte?
Sempre fui uma pessoa curiosa. Era curioso pela arte na sua totalidade. Mais tarde comecei a interessar-me por questões como o aleatório e o improviso. E também por autores como o John Cage ou o Merce Cunningham (do qual não sou esteticamente próximo, mas a nível teórico sim). É claro que para o Útero também houve uma referência muito forte: ter assistido à Pina Bausch em 1994, na cidade europeia da cultura. No fundo, veio confirmar que aquilo que nós pensávamos já existia e era possível. Sentíamos uma necessidade de libertação de amarras.
Vinte e cinco anos depois essa necessidade mantém-se?
Estranhamente sim. Podia ser algo mais relacionado com a idade, mas eu continuo a estar ligado a uma influência que talvez reconheça nos surrealistas portugueses, de um certo lado provocador. Comecei a fazer disso a minha forma de estar e de ser dentro do mundo artístico.
E como é que esse lado provocador se reflete na tua estética?
Eu estou ligado a uma estética onde a sujidade, a destruição e o caos estão muito presentes. Há a procura daquilo que o Francis Bacon definia como “terrible beauty”. Procuro corpos cansados, cheios de água, sujos. Ou seja, uma estética completamente contrária àquilo que se exigia: palcos limpos. Aquilo a que eu chamo a estética do hospital porque é fácil de montar e desmontar. Não sei se isso é uma vontade própria ou se está ligado a uma necessidade de “entra e sai rápido, por favor”. E isso tornou-se um fenómeno do novo século. “Vem cá, mas vai-te embora o mais rápido possível”. É claro que eu não posso estar de acordo com isso.
Imagino que nem sempre seja fácil dialogar com as instituições. Também a tua estética é, de alguma forma, inconveniente…
Claro, estas estéticas dão trabalho. Exigem equipas de limpeza, exigem muita gente a trabalhar e parece que as pessoas perdem o entusiasmo. Em 25 anos só fui uma vez à sala principal do Teatro Nacional. É pouco. Isso propositadamente inibe-me de chegar a um público. Não me esqueço de um espetador que no [Teatro] Nacional disse “Eu pensava que estas peças não se faziam aqui”. Um espetador muito novo, ator. Como quem diz: “Este disparate todo, este aparato todo, confuso… Quando muito numa sala estúdio, uma experiência”. Infelizmente não se alia a experimentação ao centro. Por outro lado, alguns municípios e instituições têm vindo a demonstrar uma grande vontade em acolher propostas diferentes, que não sejam apenas concertos ou espectáculos de stand-up.
Sentes que os teatros, enquanto lugares, precisam de ser reinventados?
Sim. Gostaria que os teatros voltassem a ser espaços de utopia. Antes íamos ver peças para nos revoltarmos contra a instituição, contra nós próprios, contra o nosso gosto. Não íamos ver teatro por uma questão consumista. Íamos para amar ou odiar. E é isso que esperamos de quem vem assistir às nossas criações, seja onde for.
Como é que te relacionas com diferentes formas de expressão artística no teu trabalho?
Inicialmente eu queria ser artista plástico. Depois criei o Jorge Rosado e crio luzes e cenografia. E pinto, embora não seja a minha principal atividade, como inicialmente achei que seria. Essa frustração abriu-me outros caminhos…. Aquilo em que eu talvez tenha sido mais forte durante muito tempo foi o que eu menos queria ser: ator. Mas realmente eu era muito convidado. Ainda continua a sê-lo. Ora, com o tempo, eu comecei a dizer que não queria porque comecei a ver que esse não era o meu lugar. Ou melhor, não é sempre o meu lugar.
Não te arrependes de ter recusado vários convites?
Não. Se calhar perdi muitas coisas, mas ganhei outras. As pessoas tratam-me mais como aquilo que eu queria. Veem-me mais como criador, falam mais do Útero. Não estou tão disperso em televisão, cinema… Agora quando faço cinema é para trabalhar com autores com os quais realmente me identifico.
E como é que te relacionas com a palavra durante a criação?
Tenho caminhado para a fragmentação das palavras. Nas minhas criações são quase inexistentes. Daí a minha definitiva passagem do teatro para a dança. Creio que a dança se abriu mais à incompreensão e ao desconhecido. Sabes aquelas relações em que as pessoas estão apaixonadas e passam a ser meramente amigas? Eu acho que isso aconteceu comigo e com o teatro. Não quer dizer que eu não vá fazer teatro com paixão. Mas quando o faço tento levar as outras linguagens. Sou seduzido pela imperfeição e pelo caos.
Também dás aulas na Instável… Como é que a geração mais nova lida com a imperfeição e o caos?
Sinto que as pessoas recusam cada vez mais uma estética que tenha alguma relação com o sacrifício ou com a ideia de dor. Já me disseram coisas como “Passou-me um trator por cima”, “Não foi para isto que eu vim para aqui”. Algumas pessoas procuram apenas o prazer, um prazer que não implique sacrifício nem leve a um limite de resistência. Claro que a intensidade abala…. Haver um ritmo muito forte incomoda um bocado as pessoas. Hoje em dia é muito fácil fazer ghosting ao estúdio.
Vais estrear muito brevemente uma nova criação, Hamlet, L’Ange du Bizarre. Como me contaste num telefonema, o subtítulo parte de um livro de Edgar Allan Poe e de uma exposição que viste há uns anos, em Paris. Porquê Shakespeare?
Há qualquer coisa no Shakespeare que te obriga a voltar. No Shakespeare e no Beckett. No Hamlet seduz-me esta ideia de um homem em choque com o mundo. O que é, sem dúvida, muito atual. Não interessa quem é, na nossa criação até é uma mulher. Hamlet é um nome, não tem que ser um género. É um conceito. Um modo de estar na vida, também ele marginal.
Estás satisfeito com o processo de criação?
Sim. Estou exausto do ensaio de ontem. Ainda sinto nervosismo quando vou ensaiar e isso deixa-me muito feliz. Gostava de sentir isso com 70. Aliás, acho que esta estética do Útero resultaria muito bem com corpos de 70, 80 anos. Mesmo que o Útero adormeça seria engraçado… Tudo com cabelos brancos, muletas, uma pessoa a tentar sobreviver ao caos. Por exemplo, imagina fazermos Um Lugar sem Coordenadas nessa altura.
Olha que bela imagem…
Era, não era?
Entre 1991 e 1997, fez parte do Coletivo de Teatro O Grupo, em Almada. Trabalhou em várias produções do coletivo Olho, no Espaço Ginjal. Colaborou com o Teatro O Bando entre 1996 e 2016. Fundou a Útero Associação Cultural em 1997 onde desenvolve o seu trabalho artístico autoral. A sua mais recente criação intitula-se Hamlet, L’Ange du Bizarre.
é doutorado em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com uma tese em torno das obras de Fernando Lemos, Rui Nunes, Manuel Gusmão e Luís Quintais. É investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e membro da equipa editorial da Revista Interartes SKHEMA.