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Um gesto onde se abriga a cinza: esboços para Rui Nunes

 

[recomeçar]

«a alegria: um pequeno desencanto da morte». Rui Nunes, Ofício de Vésperas, livro de 2007, página 26. Apenas isto, este apontamento, no fundo da página, pequena mancha a negro que confere ao vazio envolvente o seu insólito fragor. Tinha que começar por algum lado, por isso comecei por aqui: pela releitura deste livro, por este estado de inebriação, a busca desesperada de uma fímbria de surpresa num lugar sofregamente iluminado.

Estaria a mentir se dissesse que procuro a alegria, num lance de franqueza heurística como o de Gilles Deleuze quando, a propósito d’Os Subterrâneos de Kerouac, diz numa conversa com Claire Parnet que qualquer movimento de escrita, qualquer pensamento sobre literatura, só deve acontece por amor, e por amor apenas. Dito de outro modo: não se trata de ser eu, enquanto agente e, enquanto agente, enquanto fissura e abismo e contingência vígil de tudo o que me excede, não se trata, insisto, de ser eu a procurar a alegria; trata-se, sobretudo, de nutrir condições que permitam à alegria vir ao meu encontro. E que, nesse encontro, o amor se decline como um verbo, não como uma abstracção sentimental pairando, aérea, sobre a matéria bruta e sensível dos corpos, das coisas.

Será isto possível, a mim, investigador bolseiro, há quase seis anos nisto, fora outra meia década entregue, mais do que tudo, a escancarar entre livros e imagens a ferida do acto de pensar – a ferida no acto de pensar? Como equacionar esta ferida sem condescendências nem utopismos frívolos, mas sem igualmente cair na tentação de tomar o desespero e o seu poder paralisante, numa verve apocalíptica à la Pasolini, como a derradeira forma de consolo contra o fissuramento incolmatável do mundo, contra a sanha da desmaterialização total na algocracia vigente, ou o domínio total dos algoritmos, contra a financeirização especulativa da existência, «da minha carne e do meu sangue», como previu um ainda muito jovem Karl Marx? No fundo: que fazer com estes textos contra o there-is-no-alternative a esta perpetuação de uma modalidade de sobrevivência económica, política, ecológica e moralmente inaceitável?

Que eu ponha a questão desta maneira – Será isto possível…? – tem como consequência imediata o sentimento de desânimo face à opacidade impenetravelmente densa e onerosa de um mundo formatado para ser sofrível em vez de ser experienciável, um mundo passível de dissenso, dialéctica, matizações. Mas, por outro lado, que eu insista nessa questão é também sinal de dúvida, de impaciência, de estremecimento perante um conjunto de fenómenos que não têm que ser irreversíveis e intocáveis. Que eu teime em pôr a questão assim – Será isto possível…? – exacerba o paroxismo singular em que a escrita de Rui Nunes se desdobra, de livro para livro, de há meio século para cá, com o seu esboroamento rugoso, o seu agreste acumular de bocados – e, mais importante, a sua ética incorruptível. Porque se é inelutável que continuem a haver escritores e que estes continuem a escrever, a questão que se impõe, deveras, é como não admirar que Rui Nunes continue a escrever assim, quer dizer, em contramão com os rumos oleados da anemia literária e da obsolescência editorial. Penso de imediato, como pano de fundo, no norte-americano Don DeLillo e num par de observações gizadas no seu romance Mao II, de 1991: primeiro, «Há um curioso elo de ligação entre escritores e terroristas. No Ocidente convertemo-nos em famosas efígies, ao passo que os nossos livros vão perdendo capacidade de dar forma ou de influenciar as pessoas. […] Em tempos acreditei que era possível a um romancista modificar a vida interior da cultura. Esse território, hoje em dia, foi tomado pelos pistoleiros e os fazedores de bombas. Conseguem arremeter contra a consciência dos homens. Isso que os escritores faziam antigamente, antes de terem sido comprados.» (Mao II, 2004, pp. 57-8); segundo, «Quanto mais livros eles publicam, mais nos enfraquecem. A força secreta que move o negócio dos livros é a compulsão para tornar inofensivos os escritores.» (idem, p. 64); terceiro, «E quando o romancista perde o seu talento, morre de forma democrática, está ali para que toda a gente o veja, inteiramente a descoberto, um poio de prosa inútil.» (idem, p. 197).

À revelia deste jogo viciado, contra este festim sonâmbulo, a escrita de Rui Nunes existe. Só este facto deveria bastar como resposta: sim, isto é possível. Ela existe. E, existindo, exige de si que actue linguisticamente como um estertor perigoso, o sintoma de um caos que se mantém inorganizável, «a replicação obsessiva de uma presença. Um vírus» (Irradiante, o negro, 2022, p. 29). Numa palavra: um «inacabamento» (idem, p. 83).

Às vezes, há respostas que afloram numa ínsita claridade de dia, sem que se imponha a necessidade consciente de lhes endereçar perguntas. Outras vezes, é na obscuridade que se reaprende a ver o que fica proscrito ou obliterado na crescente volatilidade hiper-real em que tudo goza de uma iníqua transparência. E às vezes, também, porque «a vida é só às vezes» (Rui Nunes, Suíte e Fúria, p. 53), sabemos simplesmente que os livros nos ajudam a viver.

 

[infernos]

É certo: calejei a mão neste labor de intérprete que giza a sua própria renúncia, que ensaia intermitentemente o gesto de uma recusa, deste contínuo aflorar do texto, sem que, nesse contacto, lhe espezinhe o direito a ser enigma, desvio, vacilação. Mas esse calejamento da mão corre o risco, enquanto vai descendo aos infernos, de ir talhando em demasia os seus gradeamentos, forjando um corrimão de aço para se proteger de possíveis quedas. Infernos, portanto, bastante climatizados, com seguro contra todos os riscos. Ora, não seria literatura que valesse a pena conhecer se não corresse riscos. Se não aceitasse como possibilidade iminente a circunstância em que o risco se dá: «circum-stancia», sublinha Silvina Rodrigues Lopes evocando Leibniz e «a hipótese de um pensamento não-determinista»; eis tudo «o que está à volta e se apresenta na sua efemeridade, ao mesmo tempo que desencadeia um tempo e espaço de errância» (A Anomalia Poética, 2022, p. 48).

Não há mimetismos espelhantes entre a literatura e o mundo prático do dia-a-dia, e só mesmo enquanto farsa diletantemente irónica é que uma vela neo-realista poderia ser acesa, com a fé literária num pobre deus suicidado por todas as nossas ficções. O inferno é saber isto, justamente isto: admitir que a literatura não nos salva dessa maneira ingénua e, sobretudo, que o que se espera dela terá que ser maior, mais veemente, do que quaisquer messianismos e programas de resgate. É «o contrário de uma moral de salão», clarifica Deleuze: «ensinar a alma a viver a sua vida, não a salvá-la» (Diálogos, 2004). O inferno é recomeçar um livro, uma leitura atenta, exactamente por aqui, entre o que lemos e o mundo em que estamos. Sem corrimão, mas também sem agonia.

Esta é a circunstância, este é o pequeno desencanto da morte: estarmos a sós com tudo o que amamos, ficarmos a sós com aquilo a que damos um nome. É esse o silente clamor de que Deus morreu, sem qualquer jactância retórica, na indiferença hiante de um «vazio coeso», «desse vazio pletórico» porque cheio de todos os nomes (O Anjo Camponês, 2020, pp. 58 e 62). Estar a sós com a aproximação do olhar à múltipla vida rasteira, aos paus cheios de lodo que ficam presos na sarjeta, às manchas de gordura escorrendo no brilho sujo de um plástico, ao bicho estropiado no meio da rua. Aproximar a cara da superfície branca de uma parede, de uma parede qualquer – e o que à distância resulta na homogeneidade contínua do branco, na lisura aplacada da superfície, dá lugar, na proximidade, a fissuras incontáveis, a minúsculas covas e grânulos que a trincha e a raspagem deixaram a descoberto, um relevo minucioso e descontínuo onde o olhar não pode senão saltar de pormenor em pormenor.

Nada disto abriga qualquer sentido, qualquer metáfora, qualquer segredo oracular. É tão-só um «tempo breve», um tempo «exclusivamente meu. Em que os pormenores são a intimidade [a intensidade] do mundo» (idem, p. 80). Ficamos a sós com a extrema clareza do detalhe, com o olhar assim vidrado na desprotecção absoluta do real, isto que emudece a sereia dos enredos, o cântico embevecido das estórias. Um intervalo impreenchível que vai de uma coisa a outra, de um olhar a outro, sem a luz da remissão: «uma presença fechada na estranheza / como Deus o era para Kant» (Ofício de Vésperas, p. 27).

Mas quem disse que um olhar assim tem de ser um olhar triste?

 

[novos mistérios]

«[…] – vou simplesmente começar pelo princípio e deixarei que a verdade venha à tona aos poucos, eis o que farei –.» (Jack Kerouac, Os Subterrâneos, 2006, p. 19). Por outras palavras, sempre outras palavras, sempre nesta incerteza gumosa: o que é que não notei no que já vi ao ler Rui Nunes, escritor português, contemporâneo-extemporâneo, âmago do meu projecto de pós-doutoramento? Que osso espreita, seco, enterrado sob nomes a mais, acusando-me no olhar uma fuga desatenta, ou um resíduo de medo, de academismo? «que palavra falta neste jogo? / que palavra é a falta neste jogo»?» (Ofício de Vésperas, p. 41).

Um clarão intransigente, totalizante, seria a imagem ideal para sobressair o efeito de uma frase contínua, ininterrupta, que apostasse em alinhar as palavras, dispô-las segundo uma determinada ordem, cercear uma hipótese de sentido. Uma frase viperina, que ambicionasse esclarecer tudo: tornar mais claro o resíduo da noite na face diurna das coisas. Uma frase que nos facilitasse, então, um acesso menos ardiloso ao dia-a-dia do mundo: como entrar na água quente do banho, respirar fundo, sentir-se em casa.

Outra coisa, porém, é a abertura do livro Osculatriz (1992): «quem me dera escrever um romance, uma história de segredos, porém desertou-me a lembrança de pradarias, cascatas e espaços cénicos: há só este prego no pulmão, área reduzida onde nada acontece que não seja dor, o ritmo do ar atravessado por uma linha perfurante que organiza a exacta amplitude do movimento do meu peito, as suas marés, sobre mim, a luz declina para a sua própria sombra num crepúsculo que me aterroriza porque não o posso amar, escrevo então o livro interminável» (p. 9).

Abrir um livro de Rui Nunes significa passar pela violência da insensatez, da frase deixada a meio, da vírgula iniciante. Um certo mistério, se me é lícito usar esta palavra, sacudindo-a de quaisquer poeiras metafísicas, persiste nestes restos de palavras com que se dá a ver o inacabado de tudo. Um certo mistério, como um grão de loucura, um sobressalto, uma pausa no sentido – nada menos do que a equivalência, segundo Bataille, entre «consciência» e «escândalo» (A Literatura e o Mal, p. 201): «uma consciência sem escândalo é uma consciência alienada», feita «de objectos claros e distintos, inteligíveis ou como tal julgados» (ibidem). Segundo o próprio Rui, numa entrevista de 2017: «É preciso que a palavra grite e que mostre a sua intimidade, a partir da violência que se exerce sobre ela» (Jornal de Letras, p. 16). É preciso que a palavra escrita devenha ex-crita, no dizer de Jean-Luc Nancy, contendo nesse proveitoso neologismo a própria estridência inabordável do cri, do grito (e recorde-se que Grito constitui, igualmente, o título de um livro de Rui Nunes, publicado em 1997). É preciso, portanto, que a reverberação do escândalo se faça sentir pelas malhas do texto – caso contrário, no lugar do mistério e do espanto, resta «a escrita instalada na infâmia», expressão perifrástica com que o autor nomeia nada menos do que a «literatura» (Barro, 2012, p. 52).

Noutro livro, surge esta interrogação: «[…] hoje, não há um movimento neste quarto, só ruídos como nomes mal pronunciados. Ou sou eu que estou desatento aos novos mistérios?» (No íntimo de uma gramática morta, 2021, p. 22). Por entre uma linguagem de destroços como é a de Rui Nunes, se não uma voraz explicitude dos destroços que constituem a linguagem, encontrar uma interrogação deste género – sou eu que estou desatento aos novos mistérios? – é muito mais do que uma cesura paliativa, uma pequena dobra onde se recupera o fôlego e retina o discreto sino da catarse. O acto poético – pois é como poeta que leio Rui Nunes – não se deixa seduzir por sublimações demiúrgicas, colando esses «novos mistérios» a disposições sobre-humanas; mas longe de nós subestimar a circunstância fabulosa de um homem que, a caminho de fazer 78 anos em 2023, num estado de saúde extremamente debilitado, quase incapaz de ver e escrever, insiste em arrancar à verrina das horas este grão de latência, o ensejo de possibilidades inesperadas.

 

[amarrotar e alisar]

Há uma curiosa afinidade que se pode traçar entre o primeiro poema do livro Ofício de Vésperas e o olhar efusivo de Peter Sloterdijk, sob a alçada carismática de Leibniz, em torno do «acontecer do mundo como um drama ontológico e cognitivo» que não extenua a alegria do espanto (Depois de Deus, 2021, p. 228). Primeiro, o poema (p. 7):

Num livro que se desdobra como um libelo contra deus – pedra-de-toque, aliás, da contenciosa imanência do autor contra as insígnias e insídias do poder, do autoritarismo, da descorporalização do real em virtude da sua ficcionalização descomprometida e desideologizada –, renunciar à palavra não significa aderir a um silenciamento de toda a vontade de dizer ou falar. Não existe a palavra, se a força do determinante instiga a busca pela verdade absoluta, imune a qualquer voz dissensual. É a esse absolutismo que se renuncia: é contra «o aço do aparo», «a aguada / tinta dos ofícios», «o rigor burocrático» e «o metal de uma frase» que Rui Nunes se insurge. Escreve-se, pois, contra esta petrificação do sentido, a mineralização sem resto das imagens, a conversão do excesso vital em fria contabilidade, mais a transparência totalitária, que é inimiga do segredo e do enigma – e do «rosto», portanto, como infinito e irradiação, na senda de Lévinas: essa distância infinita que a proximidade cava, a deriva sem destino que um rosto adensa quando nele nos perdemos, quando nele ousamos a coragem do deserto.

Mas é em resposta à imagem do «som» como «um ruído no papel» que um comentário de Peter Sloterdijk ajuda a retemperar a potência do inesperado, ou a atenção àqueles «novos mistérios». No volume Depois de Deus, o filósofo alemão reclama para os ditames do realismo, com vista a uma percepção aclarada e cientificamente objectiva do mundo, uma dose salutar de «surrealismo», para que a paixão de pensar tenha, nos seus enredamentos de feição positivista, um certo «sentido do possível, do extraordinário, do maravilhoso e do absurdo» (pp. 271-2). A questão de fundo, porém, é a de não se prescindir do direito à alegria e ao deslumbramento quando a bandeja nos é entregue destapada e, à verdade indefectível do nada que assim se expõe tão cruamente, nos é interdito fruir até de um nada de verdade.

Segundo Sloterdijk, se já não podemos aceder à ilusão salvífica dos copistas medievais, metidos nos claustros a copiar a verdade das Sagradas Escrituras e, fazendo-o, a revigorar a latência de Deus como uma garantia consumada «de uma vez por todas» (p. 227); se já não somos dotados dessa fervorosa credulidade que, face a cada linha escrita, supõe o mais ténue bafejo ou centelha divina, religando as nossas vãs palavras à certeza indubitável de uma origem, que constitui o eidos da eternidade; então, avança Sloterdijk, compete-nos «amarrotar e alisar» o texto feito de «reescritas contínuas, nas quais se manifesta o rejuvenescimento progressivo do existente» (pp. 227-8).

Amarrotar e alisar o mundo. Dois gestos consideravelmente apelativos à sensibilidade de Rui Nunes, pela valência física que os enforma: a qualidade preênsil da mão, a insinuação háptica do toque, a textura pregueada das coisas, a vibração sensual da matéria. Um mundo assim, propõe Sloterdijk, «[p]oderia ser uma folha de papel dobrada de uma forma infinita e complicada, e amarrotada de uma forma infinita e compacta, que, depois do amarfanhar original, se volta a distender gradualmente. Sob o impulso do pensador barroco Leibniz, pode representar-se o acontecer do mundo como um drama ontológico e cognitivo, no qual o dobrar original, imensamente compacto, do existente se estende de novo, graças a um desdobramento complementar. O que se considera música das esferas poderia ser o crepitar do papel do mundo a ser progressivamente alisado. Cada vez que se desenrugam pregas que antes tinham sido vincadas, na superfície aumentada do corpo enrugado surgem novas clareiras, novas assinaturas, novas objectividades, novas realidades abertas.» (Depois de Deus, p. 228).

«[…] e o som que te dizia / é agora um ruído no papel» – a literatura, ou o que em seu nome vem à estampa, abafou o som, emendou o calor do hálito, limou o inabordável da proximidade física. De certa forma, de livro para livro, Rui Nunes não tem feito outra coisa senão amarrotar e alisar esse grande «livro interminável» que é a sua escrita, perseguindo velhas obsessões, repetindo-se compulsivamente, procurando a oscilação mínima que a repetição produz. (Henri Michaux, num apontamento: «Vou repetir-me neste ponto, mas as coisas importantes nunca se repetem o suficiente para que as compreendamos com exactidão», in Escritos sobre pintura, p. 22.) Que seja, pois, aqui e ali, «um ruído no papel» para lá da sua trivialidade inerte: um barulho esplendorosamente anómalo, uma estridência que nos arrepanha os nervos. Que tenha a escrita a veemência turva, insistente, do ruído branco. Para que, fechado o livro, ele continue a segregar-se em nós, a segredar-nos algo. Que não sabemos ao certo o que é, mas confiamos simplesmente que .

 

[enredos]

 

[o canto no ocaso]

Castelo Branco, 17 de Setembro de 2022. Ao ar livre, no parque da cidade, à sombra dos plátanos. O fim de tarde na companhia de Rui Nunes, numa conversa dinamizada pela associação Terceira Pessoa. Falou-se de livros, da escrita de livros, de uma certa raiva salutar contra a literatura. De como a escrita acontece por descontinuidades, por cesuras, quando a mão que conduz o lápis ou a esferográfica pertence a um corpo doente, com os pulmões amiúde cheios de sangue, o pacemaker amiúde a disparar num desalinho – «o coração quer morrer mas não consegue / como se tivesse uma esperança que eu não tenho» (Ofício de Vésperas, p. 65) –, a visão toda moída pela cegueira, embalsamando tudo com sombras brancas, floculando as formas várias do mundo. Até o mundo desaparecer na sua abrangência holística, na sua paz acolhedora, e sobreviver apenas no ínfimo resíduo, na nitidez de uma sarda, num caroço cuspido para o chão.

Aquela tarde. Um barulho de águas caindo perto, vozes mais ou menos distantes ressoando no calor de Setembro. De longe, uma banda de rock ensaiava o repertório, o dedilhar de guitarras, a dissonância do som. Rui Nunes falava como «um homem que fala a outros homens», função que o romântico Wordsworth atribuía ao poeta: ser corpo presente que dá testemunho da sua breve passagem pelo mundo. Falava com a intensidade marchetada que lhe sabemos dos livros, das entrevistas filmadas que estão disponíveis na net. Faz as pausas de que precisa para recuperar o fôlego, mas faz das pausas, também, o âmago incisivo do momento: é nesses instantes que uma expressão se muscula, que uma palavra banalíssima relampeja, como se o ar ficasse subitamente encorpado, de uma espessura quase visível, e Rui Nunes o cortasse em duas metades com a faca do que diz, com palavras-facas.


Fotografia: Nuno Leão / Terceira Pessoa

Se existe um flirt da sua escrita à sensibilidade neobarroca, tal se evidencia na dramatização do diálogo, no exacerbamento a negrito deste ou daquele verso, desta ou daquela palavra, numa valsa onde súbitos espelhos reflectem corpos cindidos, falas que se desdobram, textos que são os únicos actores «a gesticular[em] num palco o sem enigma do mundo» – a inescapável tragédia de sermos preteridos ao grafo na folha, o drama de ser a escrita «o que resta de um suicídio não consumado» (No íntimo de uma gramática morta, p. 38). De resto, tudo se mistura ali, à sombra das árvores. Qualquer desvario momentâneo acaba por dar boleia a sucessivas experimentações, a inflexões inesperadas na conversa. A própria escrita é esta forma de tessitura remendada, cheia de buracos e grudantes corrimentos, uma prancha verrugosa onde deus, a cólera de Aquiles ou a sabedoria de Heraclito não ficam acima «da lama, do mijo e das ervas esmagadas» (Irradiante, o negro, p. 79).

Outro dia, na cidade do Porto, também pelo fim da tarde, escutei Rui Nunes insistir na «belíssima função de matar» própria da literatura. Era esse o anzol lançado, uma e outra vez, para ir tanto ao fundo como à tona das águas, talvez o marulhar das águas do Danúbio, algures nos anos 80, quando terá ouvido falar em Viena acerca de Marie Hertzansky. É a figura central do brevíssimo livro O Canto no Ocaso, reeditado pela Officium Lectionis em 2023 (a primeira edição remonta a 1984, pela Rolim) e apresentado na Casa Comum, na presença de Maria João Reynaud e do editor José Rui Teixeira.

Talvez a brevidade do livro, disposto ao longo de cinco partes ou capítulos, incite compulsivamente a denotar a clareza do seu arco narrativo: a curiosa existência daquela mulher, desde o dealbar de um dia comum, passando pelos périplos e desvarios que singularizam quem Marie é o que faz, até ao momento em que morre, prostrada na cama, com uma overdose. Tão simples quanto a sequência deste friso: «Da manhã», «Do ofício», «Da caça», «Do abandono», «Da morte».

Marie deambula pelos bares e cabarés da «cidade de Rossatz» (p. 17), arrastando trapos puídos. Partilha com estranhos a sua idade de ouro, os anos de glória vividos como cantora de ópera – «sou da estirpe das Callas, das Tebaldi, das Schwartzkopf» (p. 19) –, as festas com a nata da sociedade. O delírio é de tal modo exuberante nos trejeitos patuscos desta personagem, que se torna bastante pressentível, até pela força de concentração que a brevidade do texto induz, o prazer alegre de Rui Nunes no espanejamento da escrita. Nada menos do que esta ânsia desterritorializante, ou «a nostalgia das partidas»: uma escrita rente ao desejo de «[ir] para onde não tenha tempo de solidariedades, para onde não se confunda a amizade com o compromisso», «[n]uma língua que […] não tem memória de nenhuma confidência» (p. 31). Sob o signo desta leveza, mas sem que o texto deste livro destoe, no conjunto dos livros do autor, da força gravítica com que Rui Nunes bordeja o real, O Canto no Ocaso faz um uso caprichoso das suas escolhas vocabulares – «um sonho criptogâmico» (p. 10), «um velado-pálpebra» (p. 17) – e aplica um rendilhar dialogante vertiginoso, com a voz de Marie na primeira pessoa a cindir-se noutras vozes, em ecos do passado ressoando em monólogos dramáticos no momento da enunciação.

É do corpo de Marie – porque há sempre um corpo em Rui Nunes – que emerge esta volúpia escrevente, circunscrevendo, com o olhar, os sinais da doença, as mazelas físicas, a ratice da sobrevivência entre chulos e clientes, esses «rapazes submissos e tolos que abrem no espanto a boca e a braguilha», inspeccionando-lhe «a cor dos soutiens, a flacidez dos braços, as estrias de celulite na barriga» (p. 39). Note-se, porém, como um imediato enviesamento deste retrato, traçado pelos sinais da decadência, acaba por ser alvo de uma torção inesperada a partir dos desenhos de Agostinho Santos, que acompanha esta reedição. De facto, as propostas visuais do ilustrador tornam irradiante o corpo precário e a degradação de Marie. À imagem dos compósitos viscerais no cinema de Cronenberg (penso, de repente, num filme como A Mosca, de 1986, ou no mais recente Crimes do Futuro, com as suas coreografias de órgãos), o corpo de Marie é menos um mero cadáver adiado do que um corpo-rizoma que segrega outros corpos, outros objectos e formas de vida (flores, animais, edifícios), numa hibridização sucessiva. Em traços vigorosos, remanescentes de uma primitividade infantil – à qual, de resto, Rui Nunes foi sempre sensível (veja-se as «ideias rudimentares» associadas aos rabiscos de crianças em Irradiante, o negro, pp. 13-14) –, os desenhos de Agostinho Santos presentificam a personagem de Marie sob o signo da alegria e de um humor expansivo. Logo na capa, aquela monstruosa cabeça, arborescendo, não contém a forma picotada de uma coroa de rainha, no desenho invariante feito por qualquer criança?

Se é evidente o olhar impiedoso, tolstoiano, que percorre a personagem, é igualmente com ternura que o olhar se abeira de Marie: seja a ternura de ver uma figura anónima e sem poder, lançada ao abandono de si num contexto social que a repele; seja a ternura que desponta na desrazão da contingência, quando aquilo que tocamos e que nos toca retém em si a nitidez intransigente do enigma. «[…] morrerei sossegada», desfere Marie com desconcertante firmeza; «no futuro não há nada a descobrir no meu passado, definitivamente morta, liberta do acaso da glória póstuma, vou-me com o doce corpo dos adolescentes, sonhado nestas horas suburbanas» (p. 32).

 

[last but not least]

No futuro não haverá qualquer poder a ser reclamado, diz-nos Rui Nunes através de Marie. Talvez seja este, por excelência, o trabalho da linguagem na sua escrita: àquela «belíssima função de matar» somar-se-ia, como um reflexo, este fazer-se de morto perante as instâncias do poder, a antecipação do morto irremediável que em nós mesmos se prepara. Há uma dignidade própria em não se desejar ter poder, em afirmar que não se quer (o) poder. Não para se exilar numa margem, ganhar fama de proscrito, alimentar-se de gafanhotos e ressentimento como os antigos nómadas no deserto. Neste impoder, nesta impotência, criar a própria margem na escrita é comungar do movimento que dá forma a todas as coisas, que afirma os limiares onde a aproximação entre díspares faz fulgurar a contingência e o que nela persiste como incomensurável: captar o que ainda podem as palavras na impotência selada com que as usamos para dizer do mundo o que no mundo acontece sem elas. Posso dizê-lo de outra maneira, tal como o fez Rui Nunes, naquela tarde de Setembro em Castelo Branco, quando disse de memória um poema de Carlos de Oliveira, do livro Micropaisagem (in Trabalho Poético, p. 212):

Algures, num recuo muito subtil, num segundo que a memória deixa em suspenso, aceitamos que a vida acontece sem nós, que a vida esgarça essa possibilidade dia-a-dia mais iminente. Para matizar este cenário não é preciso ceder à inocência feérica de Marie Hertzansky, «sôfrega de azul e adorações no chantilly das nuvens» (p. 20). Basta-nos a humildade da fala, estendermo-nos na cama a olhar o tecto por cima de nós, num silêncio opado, conjugar o verbo morrer no futuro, roer a desoras a solidão deste osso. Algures, somos um nome na boca de outrem, recordam-nos por algo de que jamais nos lembramos, detêm-nos num retrato que nunca vimos. Neste preciso momento, como num poema de Roberto Juarroz, enquanto alguém no mundo está a morrer, também a nossa morte, no que há nela de impensado, já aconteceu, vai acontecendo. «Alguém leva a mão aos lábios e redescobre / um gesto onde se abriga a cinza», lê-se em Ofício de Vésperas (p. 61). Na mesma casa, noutra divisória, alguém abre e fecha gavetas, dobra peças de roupa, muda de canal – uma concentração agudizada nestes gestos vive já na inconsciência ínsita do esquecimento, que é essa margem insondável onde já estamos ausentes, onde já somos puros nadas de ausência, a matéria instável da memória. Enquanto somos esquecidos, não pensados, antecipa-se um pouco da morte, a nossa ausência consumada e consumível como ar, como a luz abrindo os espaços. Uma presença de tudo, em todas as coisas, visíveis ou ocultas, sem distinção de valor: porque «a luz vai a recantos e esmiúça novelos de cotão, sítios pouco assíduos» (O Canto no Ocaso, p. 37), os lugares mais frequentados pelos olhos quase cegos de Rui Nunes.

Há uma passagem de Beckett, uma passagem que seria de uma desolação extrema se tivesse passado pelo crivo de outro escritor, mas que em Beckett aparece e desaparece num fragor de comicidade. Aí, as cinzas de um morto – o protagonista homónimo do livro Murphy – aparecem em cena e logo desaparecem num ápice absurdo. Vou directo ao que me interessa: o homem morre incinerado, embrulham as suas cinzas num pacote, e eis que um amigo, que trazia o embrulho metido no bolso, se vê à porrada num bar, com os restos de Murphy a serem «alvo dos mais variados e científicos pontapés, fintas, passes, defesas, remates, murros e até cabeçadas». Há um realismo atroz neste desenlace, qual gesto de talhante que se cumpre a lacerar carne em bocados, sem outro reduto ontológico que não este: o serem pedaços de carne na montra de um talho. Realista, como não chegara a ser o realismo da literatura de oitocentos, malgrado a sua fama e proveito, esta passagem de Beckett desnuda a displicência escrupulosa a que as coisas estão votadas, entre um nada e outro nada: «[…] muito antes de o bar fechar, o corpo, o espírito e a alma de Murphy estavam livremente distribuídos pelo soalho; e, antes de a madrugada vir derramar mais uma vez o seu cinzento sobre a terra, foram varridos com a serradura, a cerveja, as beatas, os cacos, os fósforos, os escarros, os vómitos.» (Murphy, p. 246).

É difícil não cair aqui em tentação humanística, isto é, em conceder às cinzas de Murphy o anelo reabilitante do símbolo e da alegoria. Mas Beckett quis engenhar outra coisa com a matéria literária: justamente, expelir toda a matéria, entendida como recheio psicologizante ou substância metafísica, e investir todo o pensamento criativo numa não-literatura, de costas diametralmente opostas ao pathos da mimese e aos jogos de espelhos, operando na sintaxe uma busca ascética pela mais refinada forma de abstracção. (Não faço mais do que anuir às teses de Pascale Casanova em Beckett l’abstracteur. Anatomie d’une révolution littéraire, 1997.) Mas insisto: é difícil resistir a humanizar aquelas cinzas, isto é, a dar-lhes um ar de rosto, a forma embotadamente kitsch de um índice que, no limite, reconduziria mais depressa não ao corpo de Murphy, mas ao nosso próprio corpo e ao medo que temos de morrer. Como sair disto?

Talvez não haja saída quando tudo é exterior, quando tudo é imanência. Imanência que ao mesmo tempo nos estranha e entranha, porque é nela que estamos e é dela que somos feitos. Talvez, quando aperta a desesperança, o riso ajude a trocar o elevado pelo rasteiro, o sisudo pelo inconsequente. O riso, na verdade, não pode nada para remediar o irremediável. Mas pode esse nada, um nada gelástico de tipo beckettiano: a inconsequência do nada, que é fazer-me rir assim, a despropósito. Como é sem razão, por exemplo, que Rui Nunes se ri diante de Isabel Lucas, jornalista do Público, quando o assunto da conversa é a morte, essa «abstracção» em nome da qual não escasseiam «imensos tratados» e salamaleques: «O morto é que é o horror. Não é a morte. Há imensas conferências sobre ela, uma pessoa vai a uma conferência sobre a morte, está ali num anfiteatro, confortavelmente sentado, há um senhor debaixo de uma luz a falar e a dizer coisas inteligentes sobre a morte e nós também tão inteligentes por estarmos a compreender as coisas tão inteligentes que ele está a dizer sobre a morte. E estamos todos felizes a falar da morte. Isso não me diz nada. É a fisicalidade do morto que é horrível.» (Público, 5 de Março de 2023, em linha).

A seu tempo, isto acabará por fazer sentido, mas um sentido não redutível ao élan literário ou a um virtuosismo intelectualista ou iconoclasta. Desejaria um sentido mais comum, como um dos cinco sentidos, sem picos de ansiedade, nem desassossegos grandes; mas algo assim, tal como o imagino, parece impossivelmente longínquo, alhures no horizonte dos místicos, num halo de santidade que imagino, a desoras, pegando por exemplo num cão ou num bebé ao colo. De resto, que seria da poesia ou da literatura sem esse desejo, não fossem elas a sua falta reificada, o lugar onde se esboça e recomeça esse sentido comum, o lugar onde não se acabam os lugares?

Fala-se muito da inutilidade da poesia e da literatura, procurando reinvestir essa inutilidade, o seu fracasso ou impotência, com o fulgor próprio do inesperado. Assim seja. Admito, no entanto, que à custa de tanto exasperar na teoria por idênticas formulações pouco mais aconteça do que a necessidade subterrânea de justificar a desrazão da poesia e da literatura (como, analogamente, se repercute a questão da crise das humanidades, da crise da crise, da crase da crise…). Sim, tudo isto é inútil, tudo isto desorbita o eixo fechado da economia produtiva. E já se sabe como tudo, sendo inútil, não deixa de ser belo, como «um sítio onde pousar a cabeça» (Manuel António Pina). Entretanto, vamos entrando de pés juntos na pós-humanidade, seremos até sonhados pelo remanso de ovelhas eléctricas. Posso não ceder por inteiro à euforia da inteligência artificial e dos seus apaniguados; suspeito, aliás, de toda a voragem com que se pretende naturalizar à força, sem resquício de dúvida nem oportunidade de debate, estas realidades emergentes, estes admiráveis mundos novos que espectralizam um pouco mais o contacto que ainda possamos ter com o dito real empírico (para não falar que os rumos da transição digital também comportam oportunismos vários, concentrações de poder obscenas e alianças tácticas entre manipansos políticos, especuladores da alta finança e megaconsórcios extractivistas, fazendo chacota das ilusões democráticas em que ainda se desunham os 99% do comum dos mortais). Talvez, a este nível, me inquiete menos a distopia pura e dura de um Orwell, do que a presciência (talvez intuição seja a palavra certa) dos contos de Ted Chiang, ou dos romances de J. G. Ballard e de Don DeLillo. Este último, por exemplo, escreveu Ruído Branco, em 1985, e deste romance tão ostensivamente pós-moderno na sua extravagância satírica, para lá do que nele acontece enquanto basculho asséptico de idas ao supermercado, enquanto motim endovenoso com ameaças nucleares, teorias da conspiração, desencantamento genérico, etc., retenho tão-só os olhares fixos num pôr-de-sol, com toda a fotogenia arreigada a um pôr-de-sol, e um estremecimento íntimo, quase inefável, que se lê assim: «Esta espera é introvertida, instável, irregular, quase atrasada, tímida, tende para o silêncio. Que mais sentimos nós? Certamente que há deslumbramento, aliás é tudo deslumbramento, mas um deslumbramento que transcende as categorias conhecidas. Não sabemos se assistimos maravilhados ou receosos. Não sabemos sequer o que é aquilo que estamos a ver.» (Ruído Branco, p. 397). Sublinho estas últimas duas frases, acolho a inquietude deste não-saber, o consolo que amiúde ressalta na obscuridade. Não é em nome disto que ainda se escreve, afinal? Em nome desta hesitação face ao esmeril de «novos mistérios» (Rui Nunes)?

Pós-humanos, sem dúvida. Mas continuamos humanamente a ter um corpo, por enquanto, com tudo o que um corpo ainda implica, humanamente. Ainda nos sobem as lágrimas aos olhos, há uma música inesperável que nos comove, um ombro onde encostamos a testa e que se iguala a um oitavo dia da semana. «(ah, a dor de contar estes segredos que não podem deixar de ser contados, ou porquê escrever ou viver)» (Kerouac, Os Subterrâneos, p. 40). Há o mar, e sabe-se que existe o mar mesmo quando se está longe dele, retido no trânsito, sondando sem querer aquele «ponto morto onde a velocidade se fractura». Há a visão do meu pai a assentar tijoleira no calor de Maio, teimosamente exausto no abandono a que se entrega, magro e tisnado de sol, a camisa zebrada pelo pó do cimento, o estralejar da pá de trolha nos grumos do chão, e de repente é isto, planam-me as mãos sobre o teclado, fico sem saber o que dizer, ou sei com uma clareza excessiva as palavras que poderia alinhar para compor uma frase, ao mesmo tempo, bisonha e fiel à visão que me caiu, mas tenho medo, sou humano e tenho medo, pavor deste cansaço que me faz temer ficar disfuncional a jusante, exsicado da água viva de eventuais fulgurações, mirrado pela enxúndia destas palavras, e depois lembro-me, e deixo isto assim, a imagem meio tremida.

Os livros existem também para isto, para me perder um pouco num vagar de espera e, nesse pouco, restituir à perda a aviltante abundância do que não impõe regras nem possui limites. Às vezes, até nos achamos lidos por dentro, um pouco adivinhados, meio aturdidos. Enquanto se resiste à vida com a vida, enquanto se entretece uma dobra na existência que ousa exceder as malhas do que meramente existe.

 

[…]

Um falecido tio meu costumava dizer que, quando queria olhar para a cara de todos os filhos da puta da freguesia, só precisava de ir à missa ao domingo de manhã. Tantas vezes repeti mentalmente a violência cómica desta imagem, tantas vezes ousei filtrá-la sob a caução da injustiça, moderando-lhe a acidez, relativizando as coisas. O cúmulo da generosidade é imaginar Deus a dizer um impropério desta magnitude pela boca do meu tio. Sinto falta dele, do seu cheiro a tabaco. Lembro-me de um sublinhado que fiz há uns anos no livro O Fogo-Fátuo, de Drieu la Rochelle, a propósito da descrição de uma personagem «com bigode grisalho de fumador»: lembro-me de ter pensado no meu tio quando no remate de um parágrafo surgiram as palavras «cheirava a tabaco e a bondade».

 

[enredos]

 

BIBLIOGRAFIA

Bataille, Georges, A Literatura e o Mal, 2.ª ed., trad. Manuel de Freitas, Lisboa, Letra Livre, 2017 [1957].

Beckett, Samuel, Murphy, trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003 [1953].

Casanova, Pascale, Samuel Beckett: Anatomy of a Literary Revolution, traduzido do francês por Gregory Elliott, introdução de Terry Eagleton, Londres, Verso, 2020 [1997].

Deleuze, Gilles & Parnet, Claire, Diálogos, tradução de José Gabriel Cunha, Lisboa, Relógio D’Água, 2004.

DeLillo, Don, Mao II, tradução de José Miguel Silva, Lisboa, Relógio D’Água, 2004 [1991].

________, Ruído Branco, tradução de Rui Wahnon, Lisboa, Sextante Editora, 2009 [1985].

Kerouac, Jack, Os Subterrâneos, tradução e prefácio de Paulo Faria, Lisboa, Relógio D’Água, 2006 [1958].

Lopes, Silvina Rodrigues, A Anomalia Poética, 2.ª ed., Língua Morta, 2022.

Michaux, Henri, Escritos sobre pintura, vol. 1, trad. Ricardo Ribeiro, Sr. Teste, 2020.

Nunes, Rui, Osculatriz, Lisboa, Relógio D’Água, 1992.

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________, Barro, Lisboa, Relógio D’Água, 2012.

________, «Rui Nunes. Um grito de palavras», entrevista conduzida por Maria Leonor Nunes, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1226, 2017, pp. 16-7.

________, Suíte e Fúria, Lisboa, Relógio D’Água, 2018.

________, No íntimo de uma gramática morta, Porto, Officium Lectionis, 2021.

________, Irradiante, o negro, Lisboa, Relógio D’Água, 2022.

________, O Canto no Ocaso, 2.ª ed., com desenhos de Agostinho Santos, Porto, Officium Lectionis, 2023.

________, «Rui Nunes: “A civilização é uma aprendizagem do horror da morte”», entrevista conduzida por Isabel Lucas, Público, 5 de Março de 2023, disponível em https://www.publico.pt/2023/03/05/culturaipsilon/entrevista/rui-nunes-civilizacao-aprendizagem-horror-morte-2040460 (último acesso: 23-05-2023).

Oliveira, Carlos de, Trabalho Poético, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.

Rochelle, Drieu la (2016), O Fogo-Fátuo, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Lisboa, Sistema Solar [1931].

Sloterdijk, Peter, Depois de Deus, trad. Ana Falcão Bastos, Lisboa, Relógio D’Água, 2021.

 

Nota: A escrita deste ensaio integra-se no âmbito do projecto pós-doutoral Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes (referência: SFRH/BPD/114849/2016), financiado por fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia; e no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada, Unidade I&D financiada igualmente através da FCT (UIDB/00500/2020).

é doutorado em Teoria da Literatura. No âmbito do seu pós-doutoramento, integrou o projecto “Rastro, Margem, Clarão”, da associação Terceira Pessoa, explorando a escrita de Rui Nunes. Em 2020, publicou o livro “Na imprecisa visão do vento” (com Susana Paiva) e uma antologia poética de Raul de Carvalho.

Número #05
1. Um gesto onde se abriga a cinza: esboços para Rui Nunes
2. Do Donbass a Hiroshima: Paisagens Traumáticas, Paisagens de Monstros
3. Rebanho e multiplicação
4. Platitudes 3 (excerto)
5. Can u listen?
6. este cinema desdobrado em ossuário
7. NÍNIVE
8. Tapeçarias
9. “Não é permitida a saída de flores”
10. QUARANTIME LOVE
11. Incipit. Scree. Explicit.
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