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Rebanho e multiplicação

Parece que os animais estão a emigrar – John Berger

Em 2022, saíram de Portugal 74 viagens marítimas de transporte
de animais vivos. Cada uma pode transportar até 30 mil animais.

 

 

Olha o catálogo de toda-a-terra:
parece que os animais estão a emigrar.

Nas fotografias
as cabeças lembram estrelas
de uma alvura triste,

o gado
de gargantas cheias lembra
estrelas sobrepostas.

*

As fotografias são melancólicas,
têm poros que falam do tempo.

Mas os animais não existem no tempo: acendem-se
na pele como um espelho.

*

Cordeiro que tira o pecado do mundo: milhões
perfundem o mar.
São um povo sem pai, sem dor
nem arestas. Não trazem
como nós
uma raiz dentro da carne.

*

Com carga de leite, mães e bezerros
sangrando ferrugem, os grandes barcos
navegam para oriente – uma foice
no mapa, um terreiro com leis de pureza.

O bezerro é estendido por cordas e posto a sangrar.
Com uma estaca no coração lento.
Às vezes a manhã inteira.
Como se o homem abatesse o próprio deus.

*

Não há nada como o analógico,
dizem. É mais sujo, carnal.
O digital é como um deus
desabitado
que nos vê mas não nos olha
de olhos secos

muito limpos
os satélites no céu.

*

Penso na inversão capaz de transformar em céu
o medo profundo, os olhos aguados, os corpos
onde as almas se amontoam suaves.

(Tal como, de má-fé, se pode explicar o céu enquanto estrito fenómeno atmosférico, também assim, se quiserem, posso falar acerca das almas dos animais.)

*

Animais sobrevindos em barcos sobrelotados,
rebanhos abertos e multiplicados,
peixes com manchas profundas mas sem
reflexos do mar,
polvos vindos de sonhar

acordam vivos e regressam laminados
do lado do mundo onde a mão-de-obra
é mais barata.

*

Tempo espesso nas fotografias,
das imagens
o sórdido e velho suor.

Numa transumância lívida, as estrelas
vertem na terra o caldeirão do céu

e o nosso olho imenso,
o nosso electrizado deus
que zumbe.

*

Seremos legíveis às estrelas mais cansadas?

 

nasceu no Porto, em 1984. Publicou Flúor (Textura Edições, 2013), Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015) e Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017). Em 2019 publicou Alegria para o fim do mundo (Porto Editora), volume que reúne todos os livros anteriores. Em 2020 publicou o conjunto de prosas Clavicórdio (Língua Morta) e em 2022 Canina (Tinta da China).

Número #05
1. Um gesto onde se abriga a cinza: esboços para Rui Nunes
2. Do Donbass a Hiroshima: Paisagens Traumáticas, Paisagens de Monstros
3. Rebanho e multiplicação
4. Platitudes 3 (excerto)
5. Can u listen?
6. este cinema desdobrado em ossuário
7. NÍNIVE
8. Tapeçarias
9. “Não é permitida a saída de flores”
10. QUARANTIME LOVE
11. Incipit. Scree. Explicit.
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