skip to Main Content

Nietzsche contra VAR ou a arte trágica de Maradona

Ao futebol, in memoriam

 

La mano de Dios

Em 22 de junho de 1986, Argentina e Inglaterra se enfrentaram no Estádio Azteca, na Cidade do México, pelas quartas-de-final da Copa do Mundo de futebol. Era fácil prever que o protagonista da partida seria Diego Maradona, o maior futebolista de sempre, então no auge de sua forma. Mas nem o prognóstico mais inspirado poderia remotamente supor que, entre os cinco e os seis minutos do segundo tempo, quando o placar ainda marcava zero a zero, Maradona demoliria o Ocidente. Que, com um único toque na bola, aliás discretíssimo, mandaria ao chão um conjunto de preconceitos, isto é, um esquema de pensamento, uma interpretação da realidade, uma imagem do mundo que há milênios prevalece em nossa cultura – a ponto de se confundir com ela e até mesmo de defini-la.

A jogada – da qual teria participado, segundo a célebre fórmula do próprio Maradona, “la mano de Dios”, quer dizer, a mão de seu deus, a mão da divindade de que é discípulo e máscara, como veremos mais adiante – é uma das mais reproduzidas do futebol mundial. Desnecessário, pois, descrevê-la passo a passo ou reconstituí-la em maiores detalhes. Lembremos apenas que, insistindo em um ataque mal interceptado pela defesa adversária, Maradona disputa uma bola alta com o goleiro inglês, já na entrada da pequena área. Vinte centímetros mais baixo que o oponente, o argentino cresce para além das regras do futebol: leva a mão esquerda à pelota e a desvia para a rede. O gesto é veloz, sutil, sagaz, subversivo, soberano, demoníaco. A arbitragem não enxerga a infração. O gol é validado: Argentina um, Inglaterra zero – graças à mão divina de um prestidigitador, um mestre das aparências, um criador de verdades genuinamente falsas, um artista.

Olho no lance:

 

Para a genealogia do VAR

O gol em que intervém a mão comum a Maradona e seu deus seria hoje em dia impossível. O árbitro de vídeo, ou o vídeo-árbitro, em todo caso o VAR, o invalidaria prontamente, orgulhoso de sua perícia e retidão. Em um ato de suprema ingenuidade teórico-crítica, ou em um sinal de agudo processo de decadência, para não dizer que de violenta pulsão de morte, o futebol mesmo tomou, nos últimos anos, a inqualificável decisão de se submeter à suposta autoridade de uma imagem técnica, ou seja, de tomar como sua a tábua de valores da ciência – onde, diga-se de passagem, apenas se atualizam as superstições que animam as explicações metafísico-teológicas da existência, com as quais o pensamento científico acredita todavia ter rompido. E assim, ao subordinar suas possibilidades estéticas à legislação científica, o futebol as rebaixa hierarquicamente, desvalorizando sua própria potência artística[1].

Tendo portanto vendido ao VAR o que poderia ainda restar de sua alma, o futebol se filia a uma tendência tão antiga quanto o Ocidente, para a qual a noção de verdade designa não um valor entre outros, criado pelo ser humano em um determinado momento da história, por motivos estritamente práticos, mas um conceito válido “em si mesmo”, um ideal absoluto, uma realidade ontológica. O futebol inventa o VAR exatamente como a tradição metafísico-teológico-científica – essa a que é costume atribuir o nome genérico de cultura ocidental – inventa princípios absolutamente válidos. Com o VAR, o futebol deprecia, ao exato modo do Ocidente de que afinal é produto, tudo o que existe sobre a terra: tudo o que participa do devir ou vive no tempo. A verdade como ser e como Deus, o futebol como metafísica e como religião, o VAR como vingança contra a realidade.

Não é preciso ir longe para ver que é assim. Bastar voltarmos ao vídeo que mostra o gol de Maradona, atentando já não tanto para “la mano de Dios” quanto para o modo como a equipe inglesa reage, por assim dizer, à manifestação divino-manual da dupla experiência do acaso e do destino. São nítidos o nojo à face contraditória da existência, a recusa ao passado, o ressentimento contra o tempo e seu “foi assim”, a impossibilidade de afirmá-lo incondicionalmente, transformando-o em “assim eu quis”. Todo esse espírito negativo, esse gosto moderno-décadent, essas maneiras niilistas teriam hoje triunfado, graças à intromissão decisiva de um aliado alegadamente neutro. O VAR nada mais é do que a contribuição do futebol ao contínuo “não” à vida a que se poderia resumir a história do Ocidente. Tivéssemos a cada vez sabido proteger gênios como o de Maradona dos modos reativos de que um punhado de futebolistas ingleses são só um pequeno exemplo, talvez o futebol – e o que mais? – ainda estivesse entre nós.

 

O futebol além do bem e do mal

O VAR é então uma mera concreção futebolística da vontade de verdade que prolonga até a modernidade a antiquíssima busca do Ocidente por um fundamento essencialmente valoroso que o permita desvalorizar a vida terrena. Mas isso ainda não é tudo: é preciso reconhecer o VAR em sua base ao mesmo tempo implícita e evidente, denunciar seu fundamento mal disfarçado, revelar seu não nem tão secreto procedimento estrutural.

Senão vejamos: tudo se passa como se o VAR fixasse a verdade, como se permitisse o conhecimento do ser de cada lance, como se proporcionasse acesso ao “em si” de cada jogada. Por efeito de um simples preconceito lógico, uma cultura que valoriza de modo absoluto o que considera “verdadeiro” associa inversamente às demais interpretações da realidade – da realidade de uma partida de futebol, mas não apenas – valores que sua própria convenção declara negativos. E assim as intervenções do VAR confessam suas bases eminentemente morais. A operação fundamental do VAR é a operação moral por excelência: a oposição de valores. Recorrer ao VAR significa, no fundo, apelar à verdade contra a aparência, ao conhecimento contra o erro e, em última instância, ao bem contra o mal. É o grande tema do subsolo moral comum à metafísica, à religião, à ciência – e agora também ao futebol contemporâneo, submisso aos arbítrios de um irmão mundano do ser, um filho insólito de Deus, um neto bizarro do velho moralismo ocidental.

É o bastante para que emerja finalmente o sentido último do primeiro gol de Maradona contra a Inglaterra, em 1986, no México, em um estádio que leva o nome de uma cultura dizimada para que se pudesse expandir o modo de vida ocidental. Subvertendo as regras do futebol, “la mano de Dios” também subverte, ou antes inverte, a hierarquia de valores que há mais de dois mil anos respalda a ordem do Ocidente. O erro prevalece sobre o conhecimento e a aparência sobre a verdade: as potências estéticas do falso, ou seja, as forças criadoras da arte, se elevam a si mesmas, rebaixando o primado moralista da verdade. O mesmo seria dizer: a divina mão artística de Maradona procede à inversão do platonismo – modalidade preliminar do projeto mais amplo de uma transvaloração de todos os valores, como veremos. Vejamos, entretanto, que o futebol estava livre, no alto de si próprio, além do bem e do mal.

 

Barrilete cósmico

Livre de toda determinação moral, o futebol estava no alto de si próprio – mas não ainda no mais alto. Marcando um gol com a mão diante de todo o planeta, em uma partida eliminatória, válida por uma Copa do Mundo, Maradona ainda não diz um definitivo “sim” à realidade, ao mundo, à terra, ao tempo, à vida. Sua intervenção divino-manual é, antes de tudo, radicalmente crítica: vira de cabeça para baixo a tábua de valores da cultura ocidental, rasura a ordem bimilenar de seus termos, desfecha marteladas – é indispensável reparar que “la mano de Dios” segura um martelo – contra sua fundação mais ou menos oculta. Maradona diz seu próprio “não” ao “não” do Ocidente[2].

Nada que se confunda, certamente, com o tipo niilista de negação – do qual o VAR, como instrumento privilegiado da vingança do futebol contra a extrapolação criadora das regras que o estabilizam como esporte, mas também como estrutura de poder e como negócio[3], é um notório exemplo. Pelo contrário: o “não” de Maradona atinge o ponto extremo em que a negativa se ultrapassa a si mesma, colocando-se a serviço de uma forma superior de afirmação. De fato, não seria próprio a um gênio como o de Maradona se dar por satisfeito com um gesto primordialmente crítico, por mais potente que fosse. Negando a estrutura valorativa de uma cultura desde sempre enraizada sobre a negação, Maradona abre caminho à criação de novos valores, isto é, à construção positiva de sua arte – a arte trágica do futebol[4]

Somente quatro minutos depois de marcar o gol mais transgressor de toda a história, Maradona recebe a bola ainda em seu campo de defesa, de costas para a meta adversária, cercado por dois marcadores. Com um giro, livra-se de ambos: é o início da arrancada que apresentaria o futebol à sua mais extraordinária altura, à sua mais luminosa realização plástica, à sua máxima beleza. Entre sucessivos ingleses desorientados, como se ainda se ressentissem da ruína de seu mundo, Maradona, divino artífice das belas aparências, bailarino instintivo de uma música natural, herói apolíneo-dionisíaco do futebol, repete, a cada nova finta de seu corpo ligeiro, a cada novo passo de sua alegre coreografia, “sim” e “sim” e “sim”.

Nas cabines da Rádio Argentina, um locutor já não via em Maradona um homem: via-o como uma forma de vida sobre-humana, – como uma força vital que, superando-se a si mesma, se projetava para além da humanidade. “¿De qué planeta viniste?”, perguntava, como se a arte de Maradona estivesse distante demais da mediocridade moderna para emanar da terra. Mas o que se expressa em Maradona não é senão a vitalidade terrena: uma configuração superior da própria vida, um estado supremo do fato mais elementar da natureza, uma expressão extrema do corpo enquanto vontade de potência encarnada. O locutor intuía com acerto, porém, que toda a tábua dos valores humanos havia se tornado, precisamente, demasiado humana para Maradona. E tem ainda o mérito de o ter sabido verbalizar, em uma escolha antológica: “Barrilete cósmico”[5]

Confiram comigo no replay:

 

A tragédia do trágico

Do “não” à moral como instância valorativa ao “sim” definitivo à vida ou à vontade de potência como critério universal e absoluto de valoração, Maradona percorre, em um intervalo de apenas cinco minutos, ou em duas jogadas de uma só partida de futebol, toda a extensão do grandioso projeto de transvaloração de todos os valores[6]. É bastante seguro afirmar que, tanto crítica quanto afirmativamente, futebolista nenhum terá alguma vez realizado algo comparável. Como parece também cada dia mais seguro supor que jamais o venha a realizar. Em sua arte, Maradona foi, é e muito provavelmente será inatingível.

Surpreende então que a ordem futebolística vigente tenha se reorganizado contra Maradona desde seu plano mais escancaradamente antiestético, isto é, que os valores instituídos do futebol tenham construído sua causa – a ser aliás julgada segundo leis firmadas por sua própria pena – com base nos mais ostensivos expedientes morais? Em 17 de março de 1991, após participar de uma vitória do Napoli pelo Campeonato Italiano[7], Maradona é submetido ao exame antidoping que determinaria a primeira de uma série intermitente de acusações, investigações, intrigas, devassas, condenações e punições pelo uso de cocaína e outras drogas tradicionalmente menos assumidas pelo aparato clínico-jurídico ocidental, ou seja, pela repressão moral institucionalizada no Ocidente. O futebol de Maradona ainda conheceria momentos importantes, mas já não retornaria à plenitude de sua forma e força. E assim sua arte trágica decairia paulatinamente, cumprindo, como um destino, o arco de sua própria tragédia.

Neste contexto, alguém talvez pudesse se inclinar à conclusão de que Maradona teria acabado por transpor certo limiar de intensidade que teria mais convenientemente conservado. Ou ainda à de que o signo de suas várias passagens ao limite da moralidade tenha finalmente deixado de ser o de uma grande e vitoriosa saúde para se tornar o de algum malogro deletério. Mas atenção: segundo que critérios alguém poderia dizer seja o que for a respeito? Que ponto de vista sobre a vida autorizaria qualquer tipo de palpite? Talvez o do “Bem em si” de Platão – esse monumento ideal a um moralismo extraterrestre ou além-mundano? O do imperativo moral universal de Kant e seu esdrúxulo pressuposto da existência de condutas boas ou más para as múltiplas formas de vida do universo? Ou quem sabe ainda o dos valores do cristianismo – acaso a mais mórbida, mais sinistra, mais hostil à vida entre todas as doutrinas morais?

É a nós mesmos que estão endereçadas as perguntas. Seu sentido é perfeitamente prático: são os termos de nossa ética pessoal o que no fundo está em questão. O problema é o de saber se vestiríamos alguma vez um dos tantos uniformes da ordem estabelecida. Veríamos em Maradona um mau pai, companheiro e chefe de família? O recriminaríamos por não ter sido sempre amável com a imprensa ou não ter feito questão de andar sempre em dia com o fisco? E que diríamos do fato de que não tenha o tempo todo e menos ainda a todo custo procurado manter seu corpo economicamente útil e politicamente dócil – escolhas, diga-se de passagem, quase inimagináveis para os modos anódinos que hoje orientam isso a que por preguiça ou por miséria expressiva ainda denominamos futebol? Tenhamos algum bom gosto. Guardemo-nos dessas e de outras carolices.

 

Dioniso contra o Crucificado

Guardemo-nos de carolices e reconheçamos finalmente a estreita continuidade entre os tipos de embriaguez que determinam o meio-dia e a meia-noite do percurso trágico de Maradona. Mais uma vez, não é preciso ir a parte alguma: voltemos ao vídeo de seu segundo gol contra a Inglaterra, em 1986, e revejamos um Maradona inteiramente embriagado – se por embriaguez se entende, como convém, a condição fisiológica de toda arte digna desse nome. E notemos então que a mesma intensidade, a mesma tendência para o aumento irrestrito da própria potência, a mesma superabundância de forças que orienta o corpo entusiasmado de Maradona ao momento mais solar de sua história –  esse mesmo emaranhado pulsional pode tê-lo conduzido ao crepúsculo. Basta que perca o direito à formulação estética ou à espiritualização artística: basta que seja – por exemplo em decorrência de uma série de decisões judiciais – privado da possibilidade de sua sublimação em futebol.

Ao condenar a embriaguez extrafutebolística de Maradona, a justiça italiana, isto é, o moralismo ocidental, extirpa à sua arte a metade apolínea, condenando-a por inteiro. Afastar Maradona dos campos de futebol em que criaria algumas das mais belas formas do esporte, quer dizer, recusar a uma arte trágica a pulsão configuradora de Apolo, não significa simplesmente aleijá-la, mas desfazer o arranjo de forças que a torna possível. Restaria assim a Maradona apenas o instinto dionisíaco que, em estado puro, ou seja, como experiência natural, sem a sutileza de sua elaboração artística, representa forte risco à vida – desde os cultos órficos mais obscuros e os ritos orgiásticos semigregos mais remotos. Teremos então nós – orientados que fomos certa vez a acreditar somente em um deus dançarino – compreendido afinal qual é o deus que empresta sua mão demoníaca a Maradona, em 1986? E ainda muito mais fundamentalmente: teremos reconhecido a divindade de que Maradona é discípulo e máscara – e à qual terá no limite se oferecido em sacrifício? Compreenderemos inteiramente a grande luta de Maradona – no futebol e além ­– contra um moralismo de que a doutrina de Cristo é a variante mais popular? E o sentido da existência de Maradona, o teremos compreendido?

“–– Fui compreendido? –– Dioniso contra o Crucificado…”

Diego Maradona morreu a 25 de novembro de 2020, em pleno primado do VAR.

 

NOTAS

[1] Para uma demonstração eloquente da superioridade das interpretações estéticas do futebol em relação, por exemplo, às abordagens mais sociológicas, antropológicas e políticas do esporte – e note-se que, para o que interessa a esse ensaio, importa menos a palavra portuguesa “ciência” do que a palavra alemã wissenschaft, aplicável também às chamadas ciências humanas ou sociais – veja-se Veneno remédio ­– o futebol e o Brasil (2008), de José Miguel Wisnik, possivelmente o maior livro já escrito sobre o futebol, conforme o juízo de Pedro Lerner (2013: 8), na esteira de Katia Maciel, contra o qual jamais encontramos seja o que for.  

[2] É quanto basta para vermos que o gol marcado por Maradona com a mão esquerda já o leva ao limiar da afirmação: dizendo “não” ao “não”, está muito perto de dizer “sim” ao “sim”. É como se, ao transgredir a regra do futebol, Maradona ecoasse o grito de outro grande artista dionisíaco sul-americano, de acordo com o qual seria “Proibido proibir”.

[3] Não é objetivo deste ensaio propor uma crítica – para lá de legítima – mais estritamente política ou econômica do futebol contemporâneo. Registre-se entretanto que o mais empenhado e o mais displicente entre os observadores empíricos do esporte poderiam concordar que, como é aliás próprio ao moralismo que o fundamenta, o VAR tende a acentuar as distorções que promete coibir. É assim no Brasil, onde o número de decisões favoráveis obtidas junto ao VAR por um clube, seu orçamento e seus vínculos com a ordem vigente costumam andar de mãos muito bem dadas. Tudo isso, naturalmente, sob as escusas morais da neutralidade técnica e da objetividade científica. Nada novo. 

[4] Para uma reflexão sobre os fortes vínculos entre futebolidade e tragicidade, veja-se o “Os suplicantes (aspectos trágicos do futebol)”, de Nuno Ramos (2007). O sentido que o autor confere à noção de trágico parece contudo – se pudermos remetê-lo à clássica distinção estabelecida por Peter Szondi (2004: 23) – mais rente a uma “poética da tragédia” do que a uma “filosofia do trágico”: o texto, se não estamos em erro, deve mais à tragédia como forma estética específica do que aos posteriores desenvolvimentos filosóficos da experiência do mundo de que é o testemunho original. Parece-nos ainda digno de nota que, em entrevista à revista Em tese, Nuno Ramos diga que, futebolisticamente, Maradona seria “um erudito, um cara que leu Kant. Alta cultura” (2014: 189). Não nos ocorreria concordar. O futebolista Maradona não é um leitor escrupuloso de Kant, mas um irmão consanguíneo de seu antípoda filosófico. O personagem que encarna nos gramados não é o do erudito, mas o de seu absolutamente-outro, o artista trágico. Sua arte do futebol não pertence à alta cultura, mas a um esforço de caráter acentuadamente contracultural. 

[5] É bem possível que Maradona tenha além de tudo sido o personagem mais adequadamente apelidado de todo o futebol. “El pibe de oro”, a mais difundida de suas alcunhas, é, por exemplo, de uma felicidade surpreendente. Em “pibe” encontramos o garoto ou a criança: a derradeira metamorfose do espírito segundo Zaratustra, o estágio último da transvaloração. Em “de oro” revemos o arauto de Dioniso e anunciador do super-homem: Zaratustra, do persa, “estrela dourada”.

[6] Neste sentido preciso, Maradona talvez tenha superado inclusive o próprio projetista da transvaloração de todos os valores, que afinal a concebeu exatamente como isso mesmo: um projeto, um plano, um programa, ou ainda um ensaio, um esboço, uma antevisão: algo a ser concretizado, por exemplo, no ano de 1986.

[7] Não mencionamos Itália e Napoli como concessões inócuas ao detalhe, mas como elementos pertinentes à explicitação de mais um aspecto da tragicidade de Maradona. É relativamente consolidada a versão dos fatos segundo a qual, em 1991, o consumo de cocaína não era para Maradona um hábito novo. Tampouco estaria envolto no mais escrupuloso segredo, principalmente na cidade de Nápoles, onde Maradona jogava desde 1984. Para muitos, a punição de 1991 teria relação direta com o que se poderia definir adequadamente como a hybris de Maradona. Logo no ano anterior, a Itália havia sediado a Copa do Mundo. Tragicamente, nas semifinais do torneio, o destino colocou a Argentina diante da anfitriã, em partida disputada, por acaso, na cidade de Nápoles. Desafiando um dos mais perigosos tipos de moralismo, o moralismo patriótico, Maradona insta os torcedores do Napoli a apoiá-lo e, portanto, à Argentina, contra a seleção de seu país. Suas declarações surtem forte efeito. Representantes da federação italiana de futebol se veem obrigados a ir à televisão e apelar aos napolitanos que torçam para a Itália, contra Maradona. Em campo, Maradona faz ótima partida. A Argentina elimina a Itália. A instituição futebolística italiana se vingaria com a fúria dos deuses: pune Maradona pelo uso de cocaína, visando todavia, possivelmente, os crimes que melhor convêm à sua condição de herói trágico: o excesso, a soberba, o desafio à ordem estabelecida – a hybris.

 

BIBLIOGRAFIA

LERNER, Pedro

(2013), O jogo dos possíveis: acaso, narrativa e identidade no futebol. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?dissertacao=14

RAMOS, Nuno

(2007), “Os suplicantes (aspectos trágicos do futebol)”. In: Ensaio geral: Projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 245-254.

(2014), “Ao redor do futebol”. Entrevista concedida a Victor da Rosa e Gustavo Cerqueira Guimarães. In: Em tese, Belo Horizonte, v. 20, nº 1, jan-abr, 177-189. 

SZONDI, Peter 

(2004) [1961], Ensaio sobre o trágico, Trad.: Pedro Süssekind, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

WISNIK, José Miguel 

(2008), Veneno remédio. O futebol e o Brasil, São Paulo: Companhia das Letras.

 

é doutorando em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Desenvolve tese sobre Herberto Helder. Roteirista de cinema e televisão. Já não acompanha o futebol como um dia.

Número #02
1. Nietzsche contra VAR ou a arte trágica de Maradona
2. caminhar desenhando o desejo, desenhar desejando o caminho, desejar o caminho desenhando-o,
3. Que raio de barco atravessa que raio de mar a caminho de que raio de porto? (II)
4. Ossos
5. . do escuro : Madonna dei palafrenieri .
6. Poema Sumário das Livrarias do Porto
7. O fim do ars gratia artis
8. La materia invisibile
9. Brilho
10. Era uma vez uma rosa negra
Voltar ao Topo