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Era uma vez uma rosa negra

 

NOTA PRÉVIA

Este texto nasceu de um convite que o Vítor Ferreira me fez para reflectir, sem preciosismos sisudos, sobre o projecto da Terceira Pessoa Rastro, Margem, Clarão, em torno da escrita de Rui Nunes (n. 1945). De certo modo, e daí o convite, o Rastro completa em Novembro de 2021 um aniversário redondo. Quer dizer: a 6 de Novembro de 2020, na galeria Casa Amarela, em Castelo Branco, eram lançados os três livros de fotografia e ensaio do projecto – Boca, Basta que um pássaro voe e Na imprecisão visão do vento –, e inaugurava-se a exposição com os trabalhos fotográficos de Valter Vinagre, Rui Dias Monteiro e Susana Paiva, a quem eu, o Vítor e a Eunice Ribeiro retribuímos com textos de natureza ensaística. A este par de realizações transdisciplinares, há que somar três performances distintas, cada qual experimentando no corpo o seu modo de habitar os textos de Rui Nunes: Luz negra, de Ana Gil e Nuno Leão; Querer-se morrer confortavelmente na dor, de Filipa Matta e Óscar Silva; e Um lugar sem coordenadas, de Maria Fonseca e Miguel Moreira. As performances estrearam no último trimestre de 2020 e, consoante as oscilações da pandemia, foram sendo repostas ao longo de 2021, proporcionando, aqui e ali, o reencontro dos elementos que integraram este colectivo. E até o encontro com o próprio Rui Nunes. Aqui fica, então, como uma resma de papéis ou anotações à margem, um olhar que diz o que vê em torno da experiência anual deste Rastro, Margem, Clarão.

 

[18:08]

«O verdadeiro caminho passa por uma corda que está esticada, não em cima, mas rente ao chão. Antes parece destinar-se a fazer tropeçar do que a ser percorrida.» Kafka.

 

[18:09]

Uma coisa é sucumbir à presunção de não haver no mundo nada que reclame por mais um texto. (Mesmo sem sirenes na rua, ou com a tv desligada, nunca esquecer o apelo sóbrio de Roberto Juarroz: «[…] se te perguntam pelo mundo, / responde simplesmente: alguém está a morrer.») Se vale ou não a pena continuar a escrever (sim, depois de Auschwitz), se é ou não possível crer, sem derrapagens ou vacilações, na legitimidade de ainda se articular palavras, esboçar sentidos, pensar o mundo, quando qualquer articulação coxeia usando palavras gastas ou «podres» (Jorge de Sena), tornando irrisória a promessa redonda de haver sentidos que perdurem, ou sentidos à espera de serem desvelados, para que o mundo possa aí esplender como instância real, lugar e tempo comuns, sangue do nosso sangue. Isto, claro, se restar ainda mundo para lá das lutas de galos neoliberais, do sangue e do solo, Blut und Boden, da escassez de água, da marcha escura do progresso, lava expelida, Amazónia queimada, queda de Cabul, o orçamento chumbado, o facho a vir-se.

Outra coisa é ceder à presunção de que um texto a mais se oferece ao mundo como tímida candeia capaz de lhe mitigar uma parte de sombra. (Pior quando a candeia se inflama e se revela, na verdade, um agressivo holofote, desses que impõem uma luz coerciva, com um nome e um rosto, e outras luzes por cima, mais a bandeira e a gravata, depois o hino e a pátria, mais a hecatombe que alastra, com este cinismo a preço de saldo.) Conhecemos bem isto, essa esperança subterrânea por detrás de todos os colóquios internacionais sobre a crise das humanidades, sobre a necessidade de revigorar o humanismo, sobre o papel dos intelectuais, sobre a poesia como resistência. Nem só de pão vive o homem, escreve aquele que nunca passou fome. E daí a arte, os livros, os enlevos ficcionais, o desejo de voar – formas de evasão, máscaras da infâmia, os drinks com a ministra ao fim da tarde.

Mas outra coisa ainda, talvez mais terrível, e por ser terrível mais obrigatório se torna determo-nos nela, é reconhecer o intervalo entre essas duas posições: a do texto que recua ante a intenção de escrever e a da escrita que se lança sobre a folha, por não poder – de todo – reprimir esse lance, esse salto no vazio. O intervalo, o hiato, o limiar, a suspensão. Como se a linguagem começasse a falar antes do aflorar das palavras. Manuel António Pina, num poema de Cuidados Intensivos, tem uns versos dispostos entre parêntesis – o intervalo, o hiato, a suspensão… – que dizem «(A impossibilidade de falar / e de ficar calado / não pode parar de falar, / escrevi eu ou outro)» (p. 205).

Terrível é dizer essa impossibilidade, mostrando a ferida que se abre, que então se é, que assim há, na circunstância inapelável de existirmos e de estarmos no mundo, uns com os outros. Arrancar ao silêncio modos de expressão que não o anulem, mas que lhe confiram um esboço de forma, a linha tenaz dessa imprecisão. Acompanhar os fenómenos do mundo – e fazer do texto uma forma de companhia, a companhia possível. Não um substituto, nem um bálsamo total. Juarroz diz que a poesia procura para o ser humano, «[…] perante a impossibilidade de respostas, criar presenças que o acompanhem» (Poesia e Criação I, p. 22). Uma companhia: o amigo que acompanha outro amigo até casa, o objecto que ladeia outro objecto na cómoda. A companhia não desfaz a solidão, porque desfazer-se dela é tornar a companhia intolerável. Ela aceita a solidão antes de tudo o mais – antes de todas as suspeitas, teorias, prescrições – e dignifica-a, expande-a, partilha-a. Com a generosidade das coisas que consolam pela sua existência, «feridas do mesmo milagre» (Rilke).

Entretanto, perdi-me.

 

[09:13]

O primeiro encontro foi em Matosinhos, dia 13 de Janeiro. Enquanto decorria a viagem até ao destino, sentado no comboio, depois seguindo de metro, inquietava-me a consciência de estar ali tão impreparado. Nem um bloco de notas trazia, nenhum manancial de perguntas, sem um esquisso preliminar, feito de pontas-soltas ou palavras-chave, que me ajudassem a quebrar o gelo caso a ansiedade me deixasse desarmado, a língua colada ao céu-da-boca. O encontro seria informal, sabia-o desde que, por telefone, a coisa se desenhara no horizonte do possível. Mas não há informalidade descomplexada que atenue o peso dos corpos em presença: o sangue corre mais depressa, ou é o coração que dispara, ou é a barriga que dói, ou é o suor frio na palma das mãos. O real acontece com a premência incisiva do que não se repete, a ferida aberta do agora.

Na qualidade de leitor, o significante «Rui Nunes» existia na minha relação, e apenas nessa relação, com a sua escrita. Era eu e os meus livros, eu e o meu lápis, eu e as margens e os sublinhados e os parênteses abertos onde intercalava ruminações de hermeneuta, colagens de outros livros, capturas de filmes. Consolidei dentro de mim que conhecer Rui Nunes era conhecer o que ele, enquanto autor, me dava a ler na distância essencial a que os livros e a leitura dão forma. A par disso, sobrevoando as entrevistas que lhe foram sido feitas, conhecia-lhe a repulsa pelo flash promocional, a relutância em dar o corpo às balas da literatura. Estava e está-se «nas tintas» para tudo isto, como amiúde diz: para isto das letras, isto dos seminários, das tertúlias, dos chás com bolinhos nos encontros de escritores. E isto de pós-doutorandos, também; meti na cabeça que não seria eu a dita excepção à regra.

Por sua vez, nunca o tomei por um marginal das letras, outra imagem com as costas demasiado quentes no fabrico de estátuas vivas e incensos literários. Mas aceito que, naquilo que escreve, se cava uma margem. Não ao sabor de um qualquer espírito de militância ou solipsismo, não para se demarcar dos demais (a começar, pelos demais escritores) – mas porque é sempre aí, na margem, à margem, que um olhar subjectivo inapelavelmente está para se fidelizar com o inegociável da solidão de se estar num mundo em comum.

E ali ia eu, de comboio, de metro, ao seu encontro. Ao encontro de uma impossibilidade que não era meramente especulativa ou teórica: constituía uma espécie de traição. Como se fizesse batota num momento de leitura. E o que é fazer batota num momento de leitura? Querer compreender, sistematizar, enquadrar o círculo. Querer desvendar o segredo. Mas que segredo? Sabia de antemão que não era esperado de mim fazer o papel de especialista de coisíssima alguma. O único segredo é entrar, como escreveu algures Maria Gabriela Llansol. Estar frente a frente, seja com quem for, vivo ou mineral, de noite ou de dia – eis a luminescência do próprio segredo, a sua impropriedade essencial, o devir múltiplo de tudo.

Com ou sem deleuzianismos, cheguei à entrada do hotel Sea Porto e, com a réstia de nobreza que mora em todas as perguntas, anunciei-me com um simples: Rui?

 

[10:56]

No momento em que entramos na casa de Querer-se morrer confortavelmente na dor, parece haver, ainda que de forma não intencional, sombras de Raul Brandão no diálogo entre o Óscar e a Filipa, assim como os sinais de pobreza que rodeiam os actores naquela única divisão, que liga o quarto à cozinha. Mesmo a circunstância histórica que envolve a estreia deste espectáculo – o ano de pandemia, com a consequente crise económica, social e sanitária – contribui para acentuar o que tanto na escrita de Rui Nunes (com destaque para o texto de A Boca na Cinza, proeminente aqui), como na de Raul Brandão, tem que ver com a consumação irredimível da morte de deus, da morte do eu subjectivo, da morte da morte. E ainda o medo, a ruína da família e de qualquer instituição simbólica, a degradação humana, a violência e o mal – imagens sobreviventes que, numa experiência colectiva de crise como a da pandemia, adquirem um ardor bastante expressivo.

Dá-se, inclusive, um curioso paralelismo ao nível das acções executadas: por exemplo, a voz da Filipa começa por perguntar à figura do Óscar se ele quer café, ficando os dois a remoer, numa espécie de pingue-pongue desinteressado, se o café estando pronto, ao lume ou já na mesa é um motivo suficientemente anódino para se esgotar neste quebra-gelo, ou se permite aprofundar, de vez, a relação de amor-ódio entre os dois. Por sinal, a primeira cena de O Gebo e a Sombra, de 1923, abre com a fala de Sofia dizendo amiúde: «O café está quente»; e mais adiante: «O café está ao lume» – e assim se vai desnovelando, entre falsas partidas, um drama de vida no limiar da miséria, durante oito anos, com o frio invernal entranhado nos ossos, o caruncho roendo a casa e quem nela habita – e a insídia do crime como possibilidade de esconjurar o impasse da vida. «Um crime talvez qualquer de nós o pratique amanhã», pondera João, filho de Gebo.

Se me fixar apenas na casa, é como se do seu próprio interior, do seu halo vazio, me chegasse aquele par de vozes. Quer dizer: o Óscar e a Filipa, a um canto, no escuro, mal existem. Citando Rui Nunes, desarrumando e recosendo passagens avulsas dos seus livros, o diálogo que encetam na penumbra é uma dança de espectros. Do interior de uma velha casa, com coisas velhas, uma panela ao lume, um tapete sujo, cigarros ardidos e fósforos no chão, a cama por fazer, a presença sinistra de uma boneca de porcelana – o abandono a que estas coisas estão votadas fala, ou é falado, por esse choque entre vozes, pela sua dissonância. É esse abandono – o de uma casa vazia de gente, mas onde o vazio ressoa pelas frinchas, pelos veios das coisas – que me intimida e me expulsa das cenas em curso.

 

[16:24]

No livro O Anjo Camponês, há um texto intitulado “Dávida”. Assim, a negrito. Soma-se a essa propriedade um conjunto de características que foi tornando inconfundível o estilo deste escritor português: a pulverização textual, a descontinuidade narrativa, o cunho visual da palavra nas suas várias matizações tipográficas. E ainda a rudez vocabular, a precisão exasperada, o fascínio pela ecceidade das coisas e dos nomes que menos equivocamente as designam: nomes de aves, de insectos, de rochas, de árvores, de coisas. O cântaro, o engaço, o cuspo, o alcatruz, a carqueja, as mejengras, os picanços, o avô, a voz do avô, os livros que são a voz de quem os leu. O texto de Rui Nunes vem até nós na sua propensão física como se de um corpo se tratasse: um corpo com os seus escândalos, a sua veemência, a sua mortalidade. E uma voz, intensa, demasiado intensa para se deter nos condicionalismos narratológicos da teoria: uma voz que transcende a memória pessoal, mas sem dela abdicar; que transcende a História e as histórias, mas respigando, numa e noutras, o seu entulho, o seu torpor, a sua vergonha inconfessada. Que transcende a literatura, mas para a ela voltar, como um mau hábito, e trazendo assim ao nosso encontro a excessividade da vida. Essa voz fala-nos assim:

Dá. A quem amas o teu olhar. Dá-lhe. Uma porta fechada como se lhe desses. A tua vida. Uma porta a separar o vento do vento, a estepe da estepe, o bosque do bosque. O que lhe estás a dar não é uma passagem, mas a intimidade de uma porta. Dá-lhe o gesto que ainda não fez: aproximar a mão semiaberta da maçaneta de porcelana, esboçando um tempo que não chegará ao fim. Estarás só: tu e o movimento que ele não completará. Que nunca.
Aprende a não chegar.
A não encontrar.
E recomeça titubeante. Pouco a pouco iluminarás
uma incerteza com uma incerteza.
Quando chegares ao incerto, reconhecerás a tua arma
Começarás com as palavras que te deram e talvez chegues à tua palavra. Reconhecê-la-ás porque o teu coração há-de bater mais depressa e os teus dedos ficarão molhados de suor: descobrirás na morte a palavra que é tua.
A morte é a pedra de toque de qualquer palavra.
Encontrarás em livros muito antigos uma frase roubada, roubada a ti. E amá-la-ás como se ama, no ladrão, o reencontro.
Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem
(O Anjo Camponês, pp. 61-2).

Leia-se devagar. Não que a advertência seja necessária, porque a pontuação do primeiro período irá impor uma espécie de embraiagem. A primeira frase, um só verbo no imperativo: «Dá». Ponto final. Não importa o quê, intransitivamente, sem objecto, nem finalidade, como diria Kant. A coragem de um gesto inútil. Como quem não espera sequer receber, mas está disposto a abrir-se à condição da hospitalidade. A ética como filosofia primeira: a nudez do rosto – rosto sem rosto, que é significação em si, e não forma plástica – é um convite à empatia e ao encontro. Como quem dá uma «porta fechada», que não é «passagem», mas a sua «intimidade»: o abeirar-se do outro, a margem que torna possível a aproximação, o vazio onde o diálogo ressoa. Entrar pela porta seria invadir, transgredir o corpo, usurpá-lo do seu segredo. Não: mantendo-se a inviolabilidade do segredo, aquele a quem me dirijo é ainda um absoluto. Absoluto na sua vulnerabilidade, na sua nudez. Anunciando a mortalidade comum entre quem dá e recebe. «Dá». Ponto final.

Mas a frase prossegue. O amor, a porta, a casa. A intimidade no desenho de um gesto que não se fecha: «esboçando um tempo que não chegará ao fim». (Intervalo, cesura, hiato, Luz negra: o Nuno riscando o escuro numa chuva de flashes, a Ana esquissando a sombra numa ardósia, luta entre o corpo e o marcador e a opacidade física de ambos.) A incompletude é essencial: signo de liberdade, do que fica aquém de qualquer apropriação. Nada disto é idealismo puro, abstracção desrealizante, trejeito metafísico. Porque é ao corpo que o texto se encosta, é ao corpo que o texto apela: «o teu coração», «os teus dedos… molhados de suor». Caótico, convulsivo, em desmesura: o texto é um corpo que se destina a outro corpo. É um modo de dizer o amor: não o amor que se compraz e se esgota no aconchego dessa palavra, mas o amor nos últimos tempos que se tem para amar (daí a morte, a insistência na morte, «a pedra de toque de qualquer palavra»).

Nas palavras de Paul Celan, este é um texto «ferido de realidade» – com o focinho no seu tempo, na circunstância de vida que lhe coube viver – «e em busca de realidade» – o texto que acrescenta real ao real, aberto ao inexcedível de si, ao indecidível do mundo e dos mundos que são (os) outros. O poema acontece, dá-se, enquanto deriva ou errância, como «uma mensagem na garrafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração» (Arte Poética. O Meridiano e outros textos, p. 34).

Essa não é, decerto, a praia de Ítaca, onde Ulisses é esperado após a destruição de Tróia:

«Feliz quem como Ulisses fez tão bela viagem»… Rui Nunes evoca o herói da Odisseia nos seus dois últimos livros – Suíte e Fúria (2018) e O Anjo Camponês (2020) –, e neles o regresso à pátria natal não constitui um motivo de festa, nem dá azo a revivalismos nostálgicos: a história não se encerra num arco perfeito, nem se compraz com a promessa de haver continuidades, fios condutores, a segurança de um destino.

Este é outro Ulisses – como decerto também seria outro o Ulisses de Homero antes e depois de lhe ter cantado as glórias. Porque nunca é o mesmo aquele que regressa. E é essa (im)possibilidade que é aqui entrevista no livro O Anjo Camponês: «Aprende a não chegar. / A não encontrar.» O Ulisses que perdeu o rosto e se tornou a potência sucessiva de devir outro, outros. O marinheiro que se confunde com as ondas do mar, que eleva a solidão ao expoente da liberdade. Para quem um país não se confina às linhas desenhadas num mapa. Ou como quem deseja escrever um texto «inclassificável» (Suíte e Fúria, p. 53), que nunca é o mesmo de cada vez que o lemos. Como se as palavras fossem nómadas, deixando a folha em branco, cavando espaços vazios, intermitências. E nunca chegamos ao sentido, à moral definitiva, à chave de ouro.

Aprendemos, por fim, esta exigência excessiva: não encontrar – e abrimos aí uma vereda. E temos medo e não temos medo, e seguimos, sem saber ao que vamos.

 

[16:17]

William Gadis, Ágape, Agonia: «A sensação de que tudo começa a deslizar para, tentar concentrar-me sim, a mente tão clara quanto possível tentar orientar-me deixar-me orientar, Tolstói diz que Pascal tinha uma faixa cravejada de pregos que pressionava contra a carne sempre que se sentia deliciado perante algum elogio santo Deus!» (p. 76).

 

[17:36]

Um lugar sem coordenadas, com o Miguel e a Maria. A doença de existir advém de se ter nascido: acorda-se para isto sem saber que uso dar a tantos nomes, que rumo dar à vida, se nem rumo, nem vida. Somente o plástico dura, o tempo é sem memória, o ar é pútrido. Esgrimem-se gestos ao acaso para não dar descanso ao pó, enche-se de gritos a vala comum onde jaz o silêncio de deus. Da alma à lama, dois corpos erram por nenhures. Chapinham no lodo, afogam as imagens do mundo: promessas cumpridas, hinos cantados, belas histórias que embalam cadáveres. As grandes certezas são o esgoto do futuro. O futuro, o esgotamento do presente. Os corpos? Desesperadamente, erram. Sem ninguém que os espere, sem enigma: o íntimo luxo que luz no lixo.

Qual anjo sujo, caído e sujo, a Maria dança entre os escombros. Um «anjo do desespero», como no poema de Heiner Müller: «A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror.» Pedacinhos de papel colam-se-lhe ao corpo, húmido de água choca, o cabelo desgrenhado por onde se lhe escapam, negros, os olhos. Dança – um erotismo triste, apagado, dissolve-se na névoa. Não está ali a seduzir ninguém, nem tão pouco o Miguel, que cegamente se esmurra com um par de luvas, fazendo do dorso um espalhafato. Ela salta, esquadrinha movimentos erráticos, intempestivamente agrestes, como a desolação em redor. Salta por cima de tábuas despegadas, testa um equilíbrio de acrobata para quem o chão é já um céu detonado. «a tábua que separa / e une o que nunca / vai estar junto», escreveu o Rui Dias Monteiro, em Montemor.

Como sugerir leveza por gestos do vocabulário balético se a gravidade está consumada neste degredo, no ar rarefeito em nuvens de fumo? É sabido: dança-se para nada, se é o nada o que nos prende à terra. Nenhum sentido a reforçar entre este gesto e aquele. Apenas energias que o movimento desencadeia exploram a incógnita de o corpo ser corpo, a terra ser terra. Entre tumultos e bacilos, queda e dismorfose: «um deus a gesticular num palco o sem enigma do mundo» (No íntimo de uma gramática morta, p. 39).

«Cada gesto se torna destino», como escreveu Agamben. Um corpo de gestos, no seu autismo desolado, é um corpo que fulgura enquanto potência, possibilidade em suspenso, no arqueamento da dança, na curva que desenha no ar. Se isto é o fim do mundo a arrastar-se nas suas múltiplas franjas – o entulho viscoso, a água oleada, os óxidos ferrosos –, o fim incrusta-se neste par de ruínas vivas, mas ressalta no obscuro intervalo entre um gesto e um gesto, um som e outro som, uma mancha e outra mancha. O fim ressalta na distância infinita, na distância imprecisa, entre a mão que se abre e a mesma mão que se fecha. Vemos o gesto, vemo-lo a acontecer na sua insensatez protuberante. Não recomeça: ressalta. Neste bailado da derradeira humanidade, a cada movimento desavindo, no excesso de potencialidade que liberta, parece ainda querer-se «reduzir qualquer gesto ao esboço de um começo» (O Anjo Camponês, p. 53).

E, por instantes, a visão do fim neste duo dormindo em covas alagadas não se distingue do que poderiam ser as formas incipientes de tudo o que há. Serão, ao invés, proto-humanos estes dois que aqui andam? E será que isso muda alguma coisa no modo como os vejo? Pois tudo o que há é sempre um resto. Resto entre restos, os ossos das coisas. (O meu estigma judaico-cristão não me deixa ser genuinamente trágico, como os Gregos. Nem a mim, nem a estes dois vultos que agitam a água, sem porquê.)

 

[11: 42]

«as raízes das criptomérias não enraizarão, hirtas como fósseis, a mão (apanhada pela lava) a sair da lava, a mão que não chegou. A abrir-se. Os turistas observam os vestígios do futuro.» (Nocturno Europeu, p. 57).

«Estamos a conjurar-nos a nós próprios como fantasmas que assombrarão um futuro muito longínquo», escreve David Farrier na introdução ao seu livro Pegadas: Em Busca dos Fósseis Futuros, um estudo empenhado em perscrutar, com uma sensibilidade tocante, «não os resíduos de mundos passados, mas o difícil clarão de um novo mundo a chegar» (p. 24). Numa visita ao Museu Nacional da Escócia, na zona norte de Edimburgo, dão a ver ao autor pequenos objectos cortantes com cerca de dois milhões de anos. Enquanto segura, com um silêncio reverencial, o machado mais antigo da colecção – «do tamanho de um abacate espalmado» –, Farrier dá consigo a cismar: «Será que alguém num futuro longínquo pegará num pedaço de plástico do século XXI, algo moldado de forma a encaixar anonimamente na mão do utilizador como uma garrafa ou uma escova de dentes, e sentirá o mesmo sobressalto de ligação?» (p. 105).

 

[11:31]

Tenho quatro ou cinco cadernos, dos mais baratos, repletos de gatafunhos, citações, esquemas de ensaios por cumprir. Pelo meio deles, pequenos papéis, talões de multibanco, facturas-recibos de almoços e jantares, onde inscrevo, numa letra corrida, ideias súbitas, relampeadas, cintilações de textos a haver. Visualmente, sem pingo de modéstia, vejo nestes escritos um objecto bonito: a tinta azul, a cinza do lápis, a face visível, esquartejada, de um trabalho de pesquisa que não levará a nada, acolhendo nadas, sobras, o delírio esfuziante de certezas mortas na praia. Não me refiro ao conteúdo, ao rigor das suas teses, ao músculo argumentativo – que, por preguiça, não me apetece reler. Refiro-me tão-só à visualidade suja das páginas, ao rasgo inerente a cada esquisso.

Mais do que em qualquer ensaio ou artigo terminado, é nesta matéria impura que reside o meu modo mais genuíno de ler e pensar, não apenas Rui Nunes, mas qualquer autor, artista, cineasta, movimento de vida. A escrita como areia fugindo-me pelos dedos. O prazer infantil de assistir à palavra germinando na folha, rápida como a luz, como se o movimento da mão competisse contra a mandíbula da morte: é agora ou nunca, mais este rabisco, mais este fio solto, esta água viva. Sem aviso prévio, sem horário, sem regra. Acordo por vezes a meio da noite com uma palavra a arder – e levanto-me de propósito para ir registá-la.

A insubmissão do registo testemunha a minha desordem mental, os livros empilhados na cómoda, a ansiedade crónica. Uma profusão de bocados, às vezes desconexos, às vezes invariantes, que só de esgueire, distraído de mim mesmo, poderia alegar ser uma forma discreta de ajuda – mas contra o quê, para quê? Para driblar o medo, esconjurar os dias, turvar a impostura limpa, sedutora, com que me tentam vender certezas, modelos de vida, um tarifário. Não só, mas também. A maior parte das vezes, quando me perguntam o que faço para ganhar a vida, respondo vagamente que dou aulas. Sei que me entenderão assim. Mesmo que ande nisto há dez anos, a fazer investigação, a angariar bolsas, a cavar um buraco de onde não nascerá nenhuma árvore de fruto. Há dias em que odeio escrever, odeio furiosamente tudo o que seja associável a livros, à crítica, aos corredores humanísticos. E nesse mesmo instante sinto que não sei fazer outra coisa senão pensar.

Algures, numa destas folhas, rabisquei este solilóquio:

– Escreves prosa ou poesia?

– Grito.

 

[16:50]

Nas primeiras conversas que tive com o Nuno e a Ana, em Castelo Branco, quando o projecto era ainda um embrião longínquo do que veio depois a ser, falávamos de um corpo em cena a ser chicoteado pela luz. O termo clarão terá vindo daí: uma luz fortíssima, tão forte que se tornava espessa e táctil, esmagando um pobre sujeito seminu numa cegueira branca. Uma luz que fosse a personagem principal, a única em cena.

Entretanto, o Nuno despachava um email, a Ana aquecia o forno, eu picava o alho.

 

[23:43]

Uma pequena surpresa: o mais recente livro de Emanuel Jorge Botelho, Manual dos Dias Cavos, abre com uma epígrafe, generosamente expansiva, do livro Rostos. Escrito em contexto pandémico, este Manual – que só o é a título irónico, já que a única regra a que neste breve livro se obedece é a de se ir resistindo à vida pela vida – poderia ombrear com um ou outro par de livros que nasceram também no decurso das sucessivas vagas epidemiológicas que grassaram o país ao longo de 2020: estou a pensar, por exemplo, em livros tão diferentes quanto Paciente Zero, de Rui Baião (ed. Barco Bêbado), e Dias e Dias, de Adília Lopes (ed. Assírio & Alvim). Mas destaco este conjunto singelo de poemas de Emanuel Jorge Botelho por não ser sobre a pandemia e as suas várias consequências, mas por dela se servir para consolidar, com pessoalíssima veemência, aspectos tão caros a este autor como a passagem indefectível do tempo, o medo silencioso, ou o definhar do corpo e das coisas até à morte. Destila-se nestes versos a lenta consumação da vida num curso imorredoiro de dias cavos, nas suas múltiplas insídias e pequenas, mas não menos fatais, formas de violência: «tulipa negra, / sudário» (p. 9), «a tília mascada / sobre o rumor da morte» (p. 11), «tudo isto é lodoso e rarefeito» (p. 12), «masco facas» (p. 16), «um naco de amargura / capaz de dobar a noite» (p. 23).

Da epígrafe de Rostos, destaco duas passagens: a primeira, «o mistério está na luz minuciosa, em três ou quatro palavras a que se reduz o vocabulário da vida»; a segunda, o ímpeto frontal do imperativo «Cala-te», a que se reduz todo o período em que a forma verbal ocorre. Àquelas «três ou quatro palavras» e a esta última lancinante exortação responde a poesia em tom menor deste poeta: é, aliás, «com um cinzel de amargura» (p. 12) que Emanuel Jorge Botelho lapida os seus versos, libertando-os de quaisquer excrescências retóricas e autodeslumbramentos líricos. À sombra de um lance sabiamente wittgensteiniano, o poeta admite: «safa-te o silêncio, / e o uso, avisado, dos nomes da alma» (p. 13). Lição que, numa entrevista disponível no YouTube, Emanuel Jorge Botelho diz dever a um professor que o marcara para a vida: com ele aprendeu a ter cuidado com as palavras, porque a folha em branco absorve tudo.

Fica um vocabulário enxuto, à beira do murmúrio, ou a vontade do silêncio que é, na poesia, sempre o mais difícil, o limite absoluto que mantém um verso em suspenso: «as palavras têm o som de Deus a morrer», escreve Rui Nunes, «só a minha mudez afronta esse nome para onde converge todo o mal» (Rostos, p. 14). Talvez seja por esta via que estes dois temperamentos poéticos – e a ética que lhes é indissociável – se cruzem e se encontrem a meio do caminho, partilhando uma ferida em comum: «De gestos. De tinta. De ira.» (idem, p. 8). E talvez assim se ilumine o sentido inexcedível de um poema num outro livro, editado também pela Averno, em 2017, chamado Os Ossos Dentro da Cinza: um poema que Emanuel Jorge Botelho dedica – se não endereça – a Rui Nunes, com o título «TRATADO DO LODO, fragmentos», na página 11.

já restam poucos trevos inteiros.
daqueles que dão quatro folhas
às cinco letras da sorte.

a terra está cansada.
não lê, na água,
a linha que rasga as mãos.

puída, a sombra perdeu o rosto.
ajoelha no chão da noite
e chama pelos nomes
que tinha dentro da voz.

era uma vez uma rosa negra.

Atestado de decadência, cansaço existencial, sensação de desnorte e desalento, palavra-murmúrio, o íntimo de um segredo que teima em perscrutar, contra o ruído tagarela do mundo, «a linha que rasga as mãos». E, por fim, exacerbada pela elipse, desenraizada de qualquer sequencialidade, o sino expectante da promessa: «era uma vez uma rosa negra».

Divido o verso a meio, interrompo-me entre as duas metades: «era uma vez». Pausa. «uma rosa negra.» Por um lado: o equívoco doce das histórias que Rui Nunes, com uma relutância de aço, esconjura ao longo da sua escrita, desmanchando a impostura de quem, a cada «era uma vez», é servido pela palavra para justificar o estado das coisas, seduzido pela palavra, arrastado por ela para a nostalgia dos mitos de origem, algemado ao seu destino, às imagens instituídas, à objectificação pelo poder que tudo nomeia – e que, pelo nome, tudo devora.

Por outro lado: o anticlímax, pequeníssimo e frágil alçapão irónico, dessa «rosa negra», que abate sobre a cadência de uma fábula o grumo de uma descontinuidade. Sem pétalas, sem cheiro, sem kitsch: «uma rosa negra» flutua como pura imagem no vazio do poema, abrindo-o infinitamente à impossibilidade de toda e qualquer promessa cumprível, de toda e qualquer chegada. Signo de beleza, talvez, e apenas isso: a beleza mesmo antes do declínio, ou a beleza do que declina, prestes a desfazer-se em cinza, antes de escurecer, numa terrível pausa sem futuro: «o que quer que seja é a noite apocalíptica» (Rostos, p. 49).

Porque é do lado da beleza, afinal, que algo interrompe a vulgar crueldade dos dias. Assim o disse o poeta e dramaturgo Heiner Müller: «O que há de mais estranho na nossa realidade é a beleza. Isto é a maior das provocações.» (O Anjo do Desespero, p. 87).

 

[15:27]

Num dos capítulos iniciais do livro Pegadas, David Farrier alude ao trabalho de Keith Arnatt, um artista conceptual britânico, falecido em 2008, que conjugou o minimalismo com land art, a arte da performance e a fotografia. Uma das séries produzidas por Arnatt intitula-se Pictures from a Rubbish Tip, um trabalho fotográfico apresentado pela primeira vez em 1989, na exposição Through the Looking Glass: Photographic Art in Britain 1945–1989, na galeria londrina Barbican Art. São apenas cinco imagens, distinguíveis umas das outras pela disposição das cores e pela natureza da matéria objectual que apresentam, mas ainda assim partilhando entre elas um mesmo fenómeno que tende a obliterar as diferenças: o lixo.

Em cada fotografia, um close-up de restos de comida, pedaços de frango, o invólucro de celofane, um naco de broa apodrecida. A omnipresença do plástico é inegável, com um surpreendente efeito hipnotizante: a luz natural destes detritos alia-se à diafaneidade do plástico, à sua luminescência tosca, palidamente rosa e azul, como a tinta aguada em certos trabalhos de Cy Twombly. Se, por um lado, ressaltam à vista as consequências do consumo excessivo como ex-libris do Antropoceno, por outro, é à tensão ambígua destes objectos, demarcados dos locais específicos onde se encontram, que o nosso olhar se dirige: o lixo como uma coisa bela, o lixo em estado de graça suavemente elegíaca. Os bocados liquefazem-se num borrão indistinto, aqui e ali, a carne galinácea ensanguentando o polipropileno, um fio de nylon, a espuma do esferovite. No fundo, a continuidade das naturezas-mortas setecentistas, das frutas podres, das polpas bichadas, esses festins gulosamente mundanos por onde espreita a presença imbatível da morte e o peso moral da culpa.

«O enigma, no seu trajecto, chegou à valeta» (Nocturno Europeu, p. 40): eis uma legenda justíssima para esta série de Keith Arnatt. Ao passar os olhos por estas cinco imagens, não pude evitar lembrar-me dos corpos sujos do Miguel e da Maria, no primeiro ensaio aberto da sua performance, em Montemor-o-Novo: Um lugar sem coordenadas. Humanos ou inumanos, sem o calor da empatia, as sobras do humanismo edificante concentram-se no arrazoado de gestos do Miguel e da Maria. Os gestos de dois arqueólogos tardios remexendo nos fósseis que hão-de ser, ou que já o são, um tubo de alumínio, uma cabeça de gesso, um marcador gasto, uma chapa de metal. Inalam a peste, esgravatam o lixo num ecossistema arrasado. Não o lixo das coisas que apodrecem ou das coisas envelhecidas, mas o lixo das «coisas que se estragam» (O Anjo Camponês, p. 56) – o plástico do hardware, fio de cobre, baterias, sucata. «Quando essas coisas se estragam, surge um lixo não reciclável. Não se transformará em estrume, não germinarão nele as sementes, até os lagartos não gostarão de apanhar sol na superfície lisa dos seus restos. O lixo nunca está acabado. Dele sempre remanescerá outro lixo. Mais subtil. E assim, de lixo em lixo, se vai tornando intensamente limpo. Um lixo como deve ser.» (idem, p. 83).

Quando chafurdavam em duas poças de água, jacentes como túmulos, os corpos destes vultos ficavam com uma pasta esbranquiçada agarrada aos braços e às pernas. Pedacinhos de papel. Por vezes, era uma imagem intacta: o rectângulo nítido de uma fotografia impressa. Poderia ser do Valter, do Rui ou da Susana, uma qualquer cópia dos seus trabalhos no âmbito do Rastro, Margem, Clarão. Quer dizer: numa leitura sobejamente alegórica, é todo o nosso projecto que colapsa ali, naquele plástico negro encardido, no visco lodoso onde os corpos se banham. Ali, no entulho, na morte da Terra, jazem as nossas ideias, as conversas, as picardias. «Horas e horas a fio. Um por todos, todos / por uma ribanceira abaixo.» (Rui Baião, Antro, p. 8). Fizéssemos um zoom, tão vertiginoso quanto o do olhar de Rui Nunes, e veríamos – o quê? Flocos confusos do nada, lanhos venosos do nada, glóbulos espúmeos do nada. Ao sonho délfico no templo de Apolo – γνῶθι σεαυτόν –, com que nos enrodilhamos em difusos labirintos interiores, responderíamos, tão-só, com o caos da claridade numa folha de acetato.

 

[15:03]

Os telefonemas. Nada como a veemência da verdade contra a farsa. As aulas de filosofia. A crítica do João Gaspar Simões. Os jantares acesos com Saramago, o prazer de divergir com ele. O pacemaker, a operação à anca, o humor negro dos médicos. A esquerda tem que perder a vergonha de ser esquerda. A opacidade no que é transparente e a transparência no que é opaco. O grafismo de Espiga Pinto. Ter gatos ao colo. A sobrinha lendo-lhe os textos. Palavras que nascem ao redor de uma imagem, como vespas, sanguessugas, umas atrás das outras. Bocejar com a Lídia Jorge. E foi a melhor aula que dei na vida, a conversar com eles sobre o que vinha no jornal a meu respeito. O prazer de ver, apenas e só a paixão de olhar. Eichmann a estudar os horários dos comboios. Luz negra. Há livros que estão cheios de literatura, mas vazios de mundo. Quando morrer. O azul é a única cor que vejo sem drama. O Nuno a escrever no quadro, na ponta do palco, e a Ana a delinear a sombra, na outra ponta, essa simultaneidade de acções em cena, como as páginas pares e as páginas ímpares de Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado?. Saudades de nadar e ver cinema. Assunção Cristas e Isabel Moreira. Guerra e Paz, O Conde de Monte Cristo, A Laranja Mecânica, O Barão, as cores garridas que ilustravam os livros de ficção científica. O corno de um bode. Eu não sei o que aquilo é e peço-lhe que nunca mo revele. Os melhores sítios em Montemor-o-Novo para adoçar a boca. Ai dos seguros, a insegurança é uma coisa belíssima. Diz-me o médico, a rir, que o pior que me pode acontecer é chegar assim aos oitenta. O Eduardo Lourenço ilumina os poemas que lê, como se neles mergulhasse e com eles se tornasse a luz mesma do poema. O meu pai, o seu pai. O Diogo saberá como uma pessoa, à medida que o tempo passa, consegue suportar muito mais a dor do que aquilo que imagina. À imagem de um fractal, os seus textos. A simpatia de ler uma carta escrita à mão. Basta que um pássaro voe. Em Montemor, o Vítor todo nervoso quando lhe quis passar o telefone. O meu arritmologista. Não, eu é que agradeço. Meti na cabeça ler o Guerra e Paz por sua causa, agora só me falta ganhar coragem. Leves sombras atravessam a luz e, por fim, ela torna-se penumbra. O ano de 1945 e a sombra que alastra até aos dias de hoje. Olhe, um grande abraço e até breve. Se não fosse a insistência do Diogo Vaz Pinto, nem hoje estaríamos aqui ao telefone, tralalá. A escrita inseparável dos mortos, dos que viu morrer pela boca dos sobreviventes aos algozes medalhados. As cartas de Ingeborg Bachman e Paul Celan. As nervuras da folha, depois de seca, parecem as escamas de um peixe, e isso é de uma beleza incrível. Mande-me o link pelo WhatsApp.

 

[15:34]

Com aquela luz do início da tarde e o rebordo de sombra que me acolhia, perguntei-lhe se conseguia ver-me a cara, estando a menos de um metro de mim. Respondeu-me que não. Há uma claridade agressivamente tumoral que, aos seus olhos, engole todas as formas e volumes numa lava branca incandescente. Via-me como um progressivo retalho cubista, pixel a pixel: focando-se na haste ou no aro redondo dos meus óculos, passava desse ponto para a linha da sobrancelha; depois reconstituía um olho, de seguida uma sarda algures, seguindo-se um ponto negro, um grânulo de gordura, uma minúscula cratera algures na minha face. O rosto integral é uma utopia perigosa para um par de olhos que vive de migalhas, perdendo a cada investida as orlas e os limites, fazendo-os soçobrar numa maré ávida de luz. Estabelecer um retrato é, por isso, realizar o impossível. E também por aí se depreende o uso plural que o autor faz do nome Rostos, título de um livro seu de 2001, no qual se encontra, qual buraco negro por onde se propicia uma viagem no tempo, esta conversa que trocámos vinte anos antes ou vinte anos depois:

[…] não vejo, os meus olhos perdem-se na enorme paisagem circular, não sei o que ver, não há um ponto nítido onde fixar as pupilas, estes buracos, aproxima-te deles, para que deixem de ser espelho da alma, como eu gosto de dizer isto, e passem a ser dois furos de sovela num círculo azul granuloso, e de que dizem ser feios ou bonitos, ou alegres ou melancólicos, ou qualquer outra coisa, desta cor que há-de flocular sob as pálpebras descidas, no morto que virei a ser […] (pp. 59-60).

Ouvir o Rui Nunes falar é, no fundo, lê-lo em voz alta, citando-o sem aspas. À veemência de um corpo vivo, que se sabe carne para canhão, expande-se a substância da vida na substância da escrita. À nossa volta, o ruído branco de um televisor, o tinir da garrafa no vidro da mesa, o chinelar das pessoas ao fundo – e, em simultâneo, «vejo cada vez menos, às vezes só uma poeira de luz, e por isso me dizem: “como os teus olhos são luminosos”, não lhes respondo: “é a cegueira a tornar-se visível”, a doença tem sempre um lado feliz […]» (Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado?, p. 111).

[01:36]

[12:03]

«Aprende a não chegar. / A não encontrar.» Aprendemos que outros chegaram ao sítio onde eram esperados – por carrascos, burocratas, artífices da morte. Aprendemos que «todos os poetas são judeus» (Marina Tsvetaieva). Que muitos livros atravessaram o inferno, a lama, a injúria, até chegarem a nós, aos nossos olhos e às nossas mãos. Livros, poemas, imagens, homens e mulheres – nascidos sob o signo do desterro, do exílio, da deriva. Que estão sempre a caminho. Mesmo depois de Auschwitz e Treblinka, trazem a marca de tudo quanto conspirou contra a sua existência. Com os seus brancos e vazios, com os gestos frementes de quem viveu a ausência – e a angústia – do depois. «Por isso, depois de Auschwitz, é preciso que o poema não ultrapasse uma vacilação», lê-se em Baixo Contínuo. «E assim, desarmado, desmantelado, não conhecerá o apogeu de um hino, de um insulto, de uma ordem» (pp. 46-7).

É a vacilação de quem julga ter os pés bem assentes na terra e, em simultâneo, não deixa de sentir sob eles, a tremer, a fina corda de Kafka. No ensaio Tens de Mudar de Vida, Peter Sloterdijk comenta a dimensão existencialmente acrobática dos humanos a partir do célebre aforismo do autor de A Metamorfose: «O verdadeiro caminho passa por uma corda que está esticada, não em cima, mas rente ao chão. Antes parece destinar-se a fazer tropeçar do que a ser percorrida.» Um tenso exercício de equilibrismo: como se tudo à nossa volta, mesmo o que é mais rasante ou familiar, estivesse sempre à espera de nos ver tropeçar entre este mundo e um outro, mesmo que imanente àquele em que vivemos. A função dessa corda, propõe Sloterdijk, «é mais a de provar que, se chegas aqui demasiado seguro de ti mesmo, cais logo ao primeiro passo que dês» (pp. 85-6). Cada passo em frente é uma exibição acrobática, com aplausos terríveis à espera, olhos ávidos de sangue, um corpo a estatelar-se na arena.

A escrita de Rui Nunes devém, nestes quadrantes, uma escrita acrobática: uma forma de existência que, de olhos postos no chão, a sondar cada despojo com uma obstinação insensata, tropeça nesse arame esticado ou corda tensa a cada investida, a cada intenção de escrever. Daí a frase descontínua, o seu gaguejar intensivo. Por isso o acumular de bocados, as zonas mortas do texto, onde não se passa nada. Onde é exactamente o nada que passa, o nada a acontecer na distensão ofegante de uma frase que hesita entre dizer o sentido e mostrar a sua intermitência. Como o acrobata que, caminhando sobre nós, desafiando as leis da física, está sempre na iminência de cair, assim é a frase de Rui Nunes: o desejo de uma frase que nunca acabe, que nunca deixe apaziguar o seu tremor.

É essa a vacilação dos que perderam Deus pelo caminho – e a Verdade, a Origem, as boas causas universais –, e que, tropeçando, inventaram outras formas de andar. «A fractura de deus / ou do sonho de deus / que levamos em andas / como um rio sonâmbulo», escreve Roberto Juarroz (A árvore derrubada pelos frutos, pp. 74-5). A vacilação do poema, o poema-vacilação: a resposta, talvez, a uma pergunta que não sabíamos ter colocado. A evidência para a qual olhamos de frente, e só entendemos o desamparo de não lhe saber dar um nome.

Esta escrita está impregnada de falhas, pontas soltas, buracos. Lê-la é emprestar ao corpo do texto as nossas próprias intermitências: a fina crosta do cieiro, o desânimo fundo, o frio que vem do lado de fora – e do lado de dentro. É a resistência possível, ou a ética se quisermos, para um tempo que convive bem sem ética e sem resistências. Falhar expectativas, fintar a insídia de qualquer poder, ficar «farto da certeza que as palavras carregam, da veemência que termina num som estrídulo, das caras desfiguradas pelo convencimento» (Rostos, p. 54). Em vez da sedução das belas histórias, a sedição do que é obscuro, do que vinca um sulco ilegível no estupor da gramática: o desejo de «fugir dos nomes para a simplicidade daquilo que os dedos podem conhecer» (idem, p. 54). O verdadeiro encontro, o verdadeiro caminho, passam algures por aí. Pelo risco, pela incerteza. Pelo que nos convida a dar. A quem amamos o nosso olhar. A nossa vida.

 

[10:23]

Na imprecisa visão do vento, contendo as imagens que a Susana produziu, apanhou-me desprevenido na galeria, aquando da exposição em Castelo Branco. Ver aquelas imagens em dimensão alargada, respirando entre si com outro fôlego, com outra configuração (distinta, portanto, do alinhamento presente no livro que a Terceira Pessoa editou), fez-me pensar num estado doente da imagem, ou na imagem enquanto doença, com uma clareza que não havia antes notado nem sentido. Recordo uma frase de Paracelso, o alquimista: «A Natureza, ela mesma é a doença, e só ela sabe o que é a doença.»

Imagens em estado larvar, que indeterminam o seu lugar e tempo de registo. Pequeníssimos grânulos em formação na película fotográfica, alvéolos espumosos levedando na superfície, ranhuras, dedadas, veios e estrias anulando na fotografia a sua lisura e, ao invés, acentuando uma consistência quase táctil. Há um pendor tão abstractizante (como manchas de humidade nas paredes, como aguarelas primitivas que o tempo regista na matéria do mundo) quanto é visceralmente concreto o efeito de presença destas polaróides: uma doença de pele, um prurido suspeito, uma equimose.

Olho e penso: cálcio, concha, osso, caspa, mancha, unha, plasma, escama, espícula, gânglio, crisálida. Sei que isto não significa nada, mas é o que o meu olhar toca quando estou de frente para as imagens. Como senhas de acesso a um visível que está destinado a fugir-me.

A palavra «vento» é fecundamente sugestiva, também. «tudo é paz na imprecisa visão do vento», lê-se no trecho de Rostos (p. 80) que a Susana escolheu trabalhar. Burilo um pouco mais a frase, escavo um pouco mais essa dúbia «visão do vento». O vento é um fenómeno invisível: sentimo-lo, notamos o seu efeito no redemoinhar das folhas, no bater das persianas, no arrepio que provoca. Mas não o vemos. Ele rompe com os limites da imagem, atravessando-os, não apenas com a sua força, mas enquanto força. É porque há vento que a respiração circula pela Terra inteira, atravessando plantas, animais, rochas, dunas, os nossos pulmões. Poeira, grãos de pólen, bactérias, viroses, sementes, esporos de fungos, espuma do mar, partículas radioactivas: há toda uma complexa ecologia invisível que o vento acolhe na sua passagem tornando-se, por isso, um autêntico tecido vivo, ou a substância movente da vida. Lyall Watson fala da existência de uma «comunidade do ar», um «aeroplânton», dedicando-lhe uma considerável investigação e um efusivo entusiasmo: nada menos do que Uma História Natural do Vento.

Que terá de especial o vento quando associado à imagem do rosto? Desde já, o subtil paradoxo: imagem do rosto. Poderá o rosto ter imagem? Não era essa a intuição de Deleuze diante do fenómeno grotesco, gordurosamente fluido, dos rostos pintados por Francis Bacon: o de tornar visível a cabeça em detrimento dos esquemas prévios que fixam o rosto numa imobilidade, o de emancipar a sensação de uma presença viva e tortuosa contra a rigidez tumular do retrato enquanto género? Recordo-me de um momento, n’Os Emigrantes de Sebald, quando o narrador visita o estúdio de Aurach, um pintor residente algures em Manchester, e se debate com os seus estudos de retrato: por um lado, a atenção dada ao pó, «a escória negra e aveludada que se deposita quando a matéria, hausto a hausto, se dissolve em nada» (p. 139), e, por outro, o modo como a consistência da poeira inflecte na natureza interminável de cada retrato, que o pintor, na manhã do dia seguinte aos últimos acabamentos, «infalivelmente» apagava «para que, sobre o fundo já muito estragado pelas sucessivas destruições, ele pudesse exumar, como dizia, a fisionomia e o olhar decididamente inapreensíveis da pessoa que posava na sua frente» (p. 140).

Não é essa a utopia da proximidade, o de um face a face irredutível à identificação esquemática, ao olhar perscrutador, ao veneno do reconhecimento? Em Suíte e Fúria, esta interrogação: «[…] o que lembramos de um rosto é aquilo que o separa de si próprio, o acto insidioso de o tornarmos nosso, lhe acrescentarmos, o quê?, o que é isso que lhe acrescentamos?» (p. 40). Um rosto de vento, um rosto que é a sua própria passagem invulnerável. A sucessiva linha de fuga: o contorno dos lábios que não se fecha, a sarda que expande a ternura, os olhos perdidos no ar. Como nos é interdito desvelar o elemento que secretamente organiza o todo mutante da cara: fixá-la é perdermos o foco. E a muda agonia de ver num rosto o lento anúncio da morte. «Está morto e vai morrer»: esse instante fora dos gonzos que Roland Barthes entreviu no retrato de Lewis Payne.

Sem princípio nem fim: «O Vento, esse, não tem pai, / Porque ao princípio era o Vento, / O Vento e não o Verbo» (René Crevel). Recusa de quaisquer genealogias ou origens fundacionais, como a que subjaz, por exemplo, ao mito da criação divina no relato cristão: «o espírito de Deus», como o vento, «movia-se sobre a superfície das águas». E é o sopro do vento que continua a uivar nesta visão derradeira que Rui Nunes nos dá: «O apocalipse não terá túmulos a abrirem-se nem mortos a erguerem-se deles, já não haverá túmulos nem mortos, só um vento árido, limpo, sem um grão de poeira» (No íntimo de uma gramática morta, p. 9). No princípio ou no fim: a indiscernibilidade, o vento que sopra num lugar sem interstícios, de palavras impronunciáveis. Nada a imaginar, nada a efabular: a circunstância da terra entregue ao abandono de si. Um espelho em frente a outro espelho sem ninguém a ver o que entre eles se mostra. A vida anónima, que resiste em cada imagem como o último segredo. O último a falar.

 

[16:17]

Thomas Bernhard detestava indicações cénicas. A seu favor, servia-se, nada mais nada menos, do que do próprio Shakespeare, que igualmente as dispensava: tudo se resume, no fundo, a assinalar quem entra e quem sai, o tipo de espaço que os actores ocupam, e pouco mais. No fundo, para Bernhard, escreve-se textos para que os actores os explorem com o máximo de liberdade, rasurando qualquer signo de autoridade prévia. E, nessa liberdade, fulge uma ideia de bruteza primitiva que religa o teatro a um acontecimento.

Rui Nunes nunca escreveu teatro, nem textos para teatro, mas nada nos impede de entrever, na sua escrita, autênticas deflagrações cénicas. Aliás, num dos bocados de No íntimo de uma gramática morta, evoca-se «a fragilidade de qualquer palavra» em contexto ostensivamente performativo: sílaba a sílaba, desconjuntada, ela não sobreviverá a uma leitura em voz alta «num anfiteatro» ou «num palco». Torna-se imprópria ao funcionamento dramático de índole mais convencional: «para que as pessoas se recostem nas cadeiras, cruzem as mãos sobre a barriga, inclinem a cabeça para trás, ou para a esquerda, ou para a direita: e ouçam» (p. 38). Na esteira de Bernhard, há uma propensão do próprio texto de Rui Nunes para infringir corrosivamente todas as leis e pressupostos protocolares de leitura. Tem mais que ver com o próprio movimento que nesta escrita tem lugar, a paixão exasperada do olhar perante o que lhe surge puído, pobre e monstruosamente irredutível.

Vejamos. Há um velho sentado num banco, ou desorientado numa alameda, ou a escorregar na banheira, ou plenamente focado no modo como a água do banho lhe escorre na pele, as gotículas que se formam quando o vapor se adensa. Como um entalhe barroco, a palavra do texto confere à cena, ao corpo nu, ao gesto vão, uma dignidade tal, que é como se os víssemos em palco: como se um feixe de luz, na ponta extrema da sala (ou da página), aclarasse subitamente a situação que o texto nos dá a ver. Um ecce homo a cada instância, na sua desprotecção absoluta: eis o velho diante do espelho, eis a unha encravada, eis o besouro no ângulo morto do quarto.

A particularidade destes momentos cénicos é a de não conferir a nenhum deles, nem mesmo ao que pareça agir como personagem, qualquer tipo de protagonismo, desenredando-os da trama egocêntrica. Paira uma indiferença mútua entre todos esses momentos, fenómenos, luminescências: o velho tem tanta importância empírica, enquanto corpo no mundo, quanto um cão vadio na beira da estrada, ou um pardal morto, ou um pano amarfanhado ao pé de um tanque. «palavra a palavra ou coisa a coisa ligadas pela névoa trémula da luz» (Nocturno Europeu, p. 49). O sujeito humano, com as suas esperanças, remorsos e motivações obscuras, é dessubjectivizado, tanto quanto a língua permite ao autor sondar essa hipótese feliz. E no nada que sobra desse esvaziamento do eu, desse estofo personológico, medra um imenso vazio, uma abertura – como um espaço ao qual fossem retiradas todas as portas e janelas, todas as paredes. Até o chão e o telhado. Até se tornar (embora isso nunca aconteça, pois o essencial é nunca se fechar esse fluxo transformativo) um espaço total e absoluto, um puro exterior, no qual o real se derrama como um líquido vicejante, o brilho baço da «nudez brutal de qualquer resto» (idem, pp. 49-50). É no plano dessa exterioridade que o velho, o cão, o pardal e o pano comunicam entre si, mostrando uns aos outros inapelavelmente – porque basta a audácia serena de existir – o vazio e o nada que são, a sua pobreza absoluta, a sua vulnerabilidade. Deixam de ser, por isso, elementos num espaço – tornam-se, ao invés, o próprio espaço, da mesma substância topológica: «calar, morrer, falar, neste despovoamento, só a respiração, um zumbido que se aproxima. Somos entre coisas. Nem um nome» (idem, p. 50).

Peter Sloterdijk, a páginas tantas de O Estranhamento do Mundo: «[…] não são os homens que são os heróis da história, mas os ritmos e as forças do nascimento e declínio do mundo em que os homens acontecem.» Portanto: não é o velho, nem o cão, ou o pano, os intervenientes directamente implicados numa acção, ou a causa da qual ocorrerão efeitos. São eles mesmos os efeitos de um lugar e de um tempo que os apanham. Não é o velho que sai à rua, mas a rua que capta e invade o velho, iluminando-o como um acontecimento entre outros acontecimentos, mais ou menos perceptíveis. Como se os seres e as coisas no mundo não se movessem, mas fossem os lugares e os tempos a irem ao seu encontro, desenhando-lhes os contornos, surpreendendo-os no clamor da existência.

E, no fundo, é essa a surpresa com que nós, espectadores, nos deparamos quando entramos numa sala para assistir a Luz negra, a Querer-se morrer confortavelmente na dor e a Um lugar sem coordenadas. Somos nós, aí, que fazemos de espaço – e, nessa qualidade, vamos ao encontro daquelas três duplas de corpos. Movemo-nos em direcção a três realidades distintas que parecem estar a acontecer há muito tempo, com o seu começo remotamente esquecido, na gruta sem fundo de onde rugem as fábulas e os mitos de origem.

Em Luz negra, isto é de uma desfaçatez inquietante: quando nos dirigimos ao nosso lugar, já no meio do palco estão a Ana e o Nuno esgaravunhando o chão com um microfone cada um, numa acção obstinadamente vã, sem qualquer rasto visível que não o do suor que lhes brilha na testa. Escuta-se o ruído seral que fazem no amarrotar da lona que cobre o linóleo, brilhando como um mar de escamas. Chegamos, então, ao lugar de Luz negra sem saber que éramos esperados, que nos bastidores da nossa ignorância se dava um entrechoque de gestos duais. O que perdemos enquanto aquilo acontecia? O que não chegámos a tempo de assistir?

 

[00:01]

Abrasão constitui uma sequência de dez fotografias de Sílvia Moldes Matias, dispostas no terceiro número da Fanzine, uma edição da ignota (Outubro de 2021). A preto e branco, com elevada saturação, surgem corpos de passantes, homens e mulheres de perfil, atravessando a rua. A historicidade das circunstâncias temporais está inscrita nas suas caras: usam máscaras cirúrgicas. Retomo uma frase de Yourcenar que copiei para um caderno: «[…] nada aproxima tanto as pessoas como terem medo juntas.»

Ao fundo, nas fotos, a parede branca, com a superfície granulada, os seus grafitos, as fendas inscritas pelo tempo. O clarão solar imprime na parede a sombra de cada um dos fotografados: uma língua escura e espessa, como um borrão de óleo, que adquire tanta dignidade ou consistência ontológica, tanto impacto presencial, quanto cada uma das figuras humanas que por ali desfilam, silentes, de passagem pelos dias. A preto e branco, de novo. Como se esta parcela do mundo houvesse sido prensada por uma potentíssima máquina de cópias – instituindo às imagens a justeza bruta das coisas, uma atemporalidade quase esfíngica.

Curioso, no entanto, é o olhar da fotógrafa na montagem desta série. A cada fotografia de um corpo vivo segue-se um corpo mineral: fotografias de rochas, o dorso arenado de uma falésia, a imponência colossal das pedras, com os seus veios, fendas abruptas e esconderijos. É sabido que Michelangelo, o génio maneirista, dizia caber a todo o escultor o trabalho de revelar a estátua guardada no interior da pedra. Inerente ao bloco de mármore ou de granito, a forma modulada de um corpo, à espera de se tornar visível pelo labor do artista. Que estes corpos devenham pedras, ou que as pedras devenham corpos; que o uso de máscara, por premência sanitária, engendre nos rostos uma falsa neutralidade de estátua, uma rigidez inorgânica, uma indiferenciação entre o corpo vivo e a múmia; que tudo isto, no fundo, caminhe com morosidade para aquele «devir-paisagem» de que fala Rilke, ou para um «efeito egípcio», segundo Mario Perniola, ou a «imemorial noite povoada pelos mortos» entrevista por Genet nos figurinos esquálidos de Giacometti (ele próprio fascinado pela impressão de movimento que a arte egípcia lhe suscitava, após uma segunda viagem a Florença); que tudo isto singre e persevere, na sua disposição fanérica, atravessando as eras geológicas do tempo profundo, os degelos glaciares, as deslocações tectónicas – eis algumas hipóteses que, sem querer, sou convidado a explorar neste trabalho de Sílvia Moldes Matias. E é sem querer, também, que sobre elas repassam palavras como estas:

O equívoco é a vida de um rosto.
A sua humanidade?
A sua humilhação?
Um sulco respira.
Mas o que é liso sufoca.
(Rui Nunes, do livro Reservado o Direito de Admissão, 2000, p. 89).

Máscaras que os olhos transformam
em mordaças, resíduos:
não o que resta mas o que nasceu um resto.
[…]
A máscara é o quarto estado da matéria:
sólido, líquido, gasoso e máscara.
Quarto e último.
(Rui Nunes, No íntimo de uma gramática morta, 2021, p. 13).

[19:00]

Na performance do Óscar e da Filipa, o cenário da casa está desde logo exposto. O pano vermelho não se abre para nos reposicionar perante o fenómeno dúplice realidade/ficção, ou vida/teatro. Mas, ainda assim, de cena em cena, de fala em fala, gesto após gesto, intuímos que o efeito dramático daquele pano vermelho está a ser sucessivamente operacionalizado. A sua ausência determina, por assim dizer, o dispositivo de fingimento naquele par de corpos, no seu discurso e no lugar que ocupam.

Invadimos o terreno instável de um ensaio ou de uma experiência. Um pouco na linha de Thomas Bernhard (tanto o autor de O Fazedor de Teatro, como o de Autobiografia, na verdade): há uma lógica do absurdo que é escandalosamente exibida e dissecada in loco e in actu, a tal ponto que a dinâmica entre os actores exclui qualquer hipótese de nos identificarmos com eles. A frieza com que debitam texto anula o efeito de mimese, os jogos de espelho, a emotividade, as crises morais. Como disse Bernhard, em conversa com Kurt Hofmann: «O teatro é uma coisa difícil, sem carácter. Com carácter nunca se fez nenhuma peça de teatro, com moral também não. São só porcalhões e só gente fraca» (p. 85). Em vez de espelhos, temos em cena duas paredes negras, profusamente opacas. No lugar do pathos e das lágrimas, um efeito de alienação. No lugar de um eu e de um nós, a intransigência oblíqua de um eles.

Aliás, perto do fim, dá-se inclusive a entrada de duas maquilhadoras: a Célia Machado e a Elisabete Silva. Abeiram-se dos corpos – a Filipa encostada à cama, com o peito destapado; o Óscar estendido no chão, a cabeça apoiada num banco – e começam a retocar-lhes a cara, os cotovelos, pintando aqui uma ferida, ali uma pisadura, um pingo de tinta vermelha a fazer de sangue. E tudo isto às claras, aos nossos olhos, num entalhe iluminante de vanitas pré-rafaelita: a composição ao pormenor de uma morte encenada. O ludíbrio do teatro – o desmanche da linha entre realidade e ficção, em jeito de autoparódia pós-dramática – sai reforçado com o tempo que demora toda esta figuração: a pose dos actores, a dinâmica das maquilhadoras, a sonoplastia, crescente e osmótica, do Pedro Fonseca. Parece que só no preciso instante em que a luz se apaga e se corta o som é que o espectáculo Querer-se morrer confortavelmente na dor está em vias de começar. Mas tal começo é arruinado pela prontidão das nossas palmas.

 

[10:47]

Don DeLillo, O Silêncio: «Escrevo, penso, aconselho, fito o espaço vazio. Será natural, num momento como este, reflectir e falar em termos filosóficos, como alguns de nós têm feito? Ou deveremos mostrar-nos práticos? Comida, um tecto, amigos, puxar o autoclismo, se pudermos? Abracemos os gestos físicos mais simples. Tocar, apalpar, morder, mastigar. O corpo possui uma mente só sua.» (pp. 85-6).

 

[18:52]

Caro Rui,

Hoje posso dizer que já tomei uma bica consigo. Que falámos ao telefone, que trocámos cartas, que leu artigos meus no jornal e outras tretas. Mas nem por isso posso negar o tremendo susto que me acossa quando volto aos seus livros, ou quando me propõem que sobre eles escreva. Mesmo depois de lhes ter passado os olhos tantas e tantas vezes, mesmo voltando a sublinhados feitos, à página tal onde sei que me espera um disforme asterisco. Abro-os, reconheço o timbre, o negrume funesto desta ou daquela imagem, o desalinho com que cose, uma a uma, as suas obsessões, medos, mortes, a súmula de nojos. E, no entanto, assusto-me.

Assusto-me pelas justas razões que fazem do medo isso que o medo nos faz. Belisco-me, espeto a unha do polegar na carne da outra mão, diluo o pesadelo na claridade da vigília, obrigo-me a relativizar as coisas: isto é um livro, digo a mim mesmo, é apenas um livro, repito, e este é só um trabalho, ainda por cima precário. Mas abro os seus livros e experimento ainda a sensação de palmilhar areias movediças. A uma amplíssima liberdade de reacção face ao que escreve soma-se o terror de me achar emparedado numa simultaneidade: esta vergonha, pesada e incorrupta, de encontrar nas suas páginas o mundo infecto, o mundo intacto dos horrores de Goya neste desumano chiqueiro, a miséria moral dos que nos esfregam na cara a faca e o queijo que têm na mão. E a certeza de que nenhum dos seus livros, nem nenhum dos meus textos, alguma vez conseguirá interromper «o gerúndio de uma matança». Resta-me fazer de conta que sim, fingir que não escrevi o que acabei de escrever.

Sabe, quando comecei a dar aulas, com aquele rebuliço próprio dos ingénuos que grafam a literatura com maiúscula inicial, acreditava no sentido destas coisas. Já tinha comigo, na ponta da língua, a morte de Deus, a crise do sujeito, o real em apuros, esbanjando estes credos a torto e a direito sempre que era convidado a ser, academicamente, um pós-moderno. Mas uma coisa é conhecer a ladainha teórica com se acolchoa o cabeçalho de um texto. Outra coisa é acordar a meio da noite com os olhos inchados por saber que existo, que não tenho cancro nem nenhuma dessas doenças fatais que acendem noutros a dita luz ao fundo dos túneis, que não há outro futuro senão o que vem lacrado na validade dos iogurtes. E se é abusivo da minha parte atribuir à sua escrita a consciência destes pânicos e o apuramento vocacional para fazer deles a minha luz de cabeceira, é mais do que justo reconhecer que lhe devo o já só ver as coisas, as minhas coisas, segundo o crivo das suas frases, o gume dos seus bocados. Leio-o e sinto-me chegar atrasado às minhas próprias agruras e pecadilhos, às suas frases de vidro moído que invejo não poder dizer que são minhas.

Isto que vou dizer é profundamente paradoxal, sobretudo para alguém de quem se espera um mínimo razoável de clareza só porque concluiu o doutoramento e tem na estante, com post-its, a Teoria do Aguiar e Silva. Paciência. Há no que escreve uma veemência de tal ordem que esgota, assim que o leio, a realidade do mundo, condensando-a em palavras inamovíveis como pedras. Leio-o – e, por isso mesmo, sinto que não me resta outra coisa senão imitar os velhos mestres que, exilando-se no deserto, aprendiam a não escrever. Mas está visto que falhei a lição.

Se me permite a ousadia, e para dizê-lo à Flaubert, é este o seu estilo: um modo severo de dar a ver as coisas. Mas é uma severidade pungente, que nunca perde a doçura: porque dar a ver as coisas não é o mesmo que as descrever. O Rui não descreve o mundo: mostra o que, no mundo, se subtrai ao descritível sem nunca deixar de ser real. O modo de denotar a cada instante, a cada solavanco da frase, a cada poço sem fundo, a distância entre o que vê e o que diz ter visto, o intervalo que vai da experiência sensível, mesmo que imaginada, à sua captura verbal. Cavalgando esse intervalo, dissolve-se o suave equívoco de que se alimentou o romance dito realista: o servir de janela para o mundo, o de permitir a sua descrição, esquecendo-se o leitor de que tem um livro nas mãos, em vez… de uma janela. O Rui fez de tudo isto uma síntese perfeita na página 89 do seu Nocturno Europeu: «Não há a Verdade. Há unicamente um olhar que diz o que vê.»

Há os seus textos, os abruptos parágrafos que os compõem, assim como há desníveis no meu terraço, ou seixos e arames enrodilhados junto à lenha no fundo do quintal, um balde com restos de fruta e cascas de ovo, um cordão azul entre o baço da estaca e um verde cachão de salsa, cidreira, espinafres. Do sítio onde estou, vejo pela janela tudo o que acabei de elencar – e a impressão é sempre a mesma: a de que olhar, um a um, cada elemento foi, desde logo, vê-los escritos. Uma massa de escrita levedando como bolinhas de pão na ponta dos dedos (o Eduardo Prado Coelho diz isto no seu diário a respeito do tempo). Uma imensa folha em branco espraiada neste retalho de horta, onde cada sulco na terra, troço de couve ou anel de lenha têm como destino ser literatura. É terrível, mas é verdade: as coisas só me (a)parecem verdadeiras quando as imagino escritas no papel. E isto é culpa sua: você escreve assim.

Dou por mim a sobrepor as coisas que o Rui escreve à escrita dos outros, num termo de comparação desabusado. Faço juízos de valor injustos, aborreço-me só de os saber vivos. Culpo-os desde logo pela desfaçatez de terem escrito, ponto final – e é quase como se também os acusasse de não serem o Rui, veja lá. Como se culpasse o amarelo de não ser suficientemente azul. Têm as capas nas montras, os nomes na TV. Condecorados, ganham viagens pagas ao cu de Judas nas caravelas da lusofonia. Num à-vontade luminoso, debitam valores e princípios na festa triste dos colóquios, a insolência segura com que lançam um «foda-se» ao ar, mais a «poesia como resistência», o «silêncio» isto, a «defesa do atrito», querendo «dar uma de Robinson Crusoé numa praia lotada» (Stig Dagerman). Claro que sim, assino por baixo, eu mesmo dei e continuo a dar para esses peditórios. E não é que sejam péssimos escritores, atenção; a vida seria tão fácil se funcionasse à base de superlativos sintéticos… Muitos deles são «inclassificáveis», descritos como «intempestivos» pelos mesmos que o lêem a si. E, de facto, o seu amigo Rui Caeiro reconhecia a «pura bondade» de Deus ao encontrar em muito mau versejador «a graça de um bom verso». Mas ponho a mão no fogo em como se contam pelos dedos os escritores e os poetas de quem se poderá dizer o que Rui Caeiro disse de si: que você é igual à sua escrita. Igual à renúncia, à coragem, a um comprometimento ético verdadeiramente insubornável, trazendo consigo, como um corpo traz a sombra, as velhas feridas que a vida inflige nos que recusam o simplismo, o paleio fiado, a vocação para vate, o dinheiro que manda em tudo.

Olhe, fiz 35 anos no mês passado. Ao longo dessa semana, deu-me para ler O Vento, de Claude Simon. Por nenhuma razão específica – que é a melhor razão para se ler. Eu e os livros, sobretudo quando tento escrever sobre eles, funcionamos muitas vezes assim (e esta carta vai a rasto deste incauto processo): está a ver aquelas máquinas que existem nos salões de jogos e nos bares? Máquinas de pinball, de cores berrantes, num folclore de luzes a piscar e musiquinha de feira. Pois bem: há uma bola que ressalta nesse jogo, ressalta de manípulo em manípulo, choca contra as paredes do visor, e o objectivo é impedir que ela chegue à base e caia no abismo. Acho que sou um pouco essa bola. Aturdido, cagado de medo, ressalto de livro em livro, de frase em frase, ando por ali aos encontrões tentando manter-me no ar. Sou, de certa forma, empurrado pelos livros, por eflúvios de ideias, sem nunca perceber ao certo aonde pretendo chegar. Fazendo uma batota acrobática pelo meio para que uma vaga imagem de fundo chegue intacta ao fim de todo o processo, para que me reconheça liminarmente nas próprias metas que traço.

Se dou esta volta ao bilhar grande é por causa disto: fiz 35 anos e deparei-me com a seguinte passagem no livro de Simon. Não sou adepto das místicas coincidências, mas apraz-me saber que a intuição de quem nelas crê em pouco ou nada se distingue deste arrepio na espinha, este vago elemento de surpresa que faz dos livros uma respiração de fantasma, tocando ao de leve no ombro. Este trecho diz muito do susto que é lê-lo, a si, e do susto que sou eu, apanhado a tremer entre palavras suas, suspenso como a bola da máquina antes da queda: «E enquanto eu ali estava a ouvi-lo contar-me a sua história, olhava esse rosto enrugado, esses olhos infelizes e doces de cão batido, pensando «Há qualquer coisa que este tipo detesta acima de tudo», pensando ainda: «Mas o quê?», e ainda: «Não exactamente detesta. Não. Porque ele é incapaz de odiar. Mesmo o mal. Mas pior do que detestar: temer, desconfiar», e outra vez: «Mas o quê?», e ainda: «E mais do que temer, mais do que desconfiar: morrer de medo.» É por isso que ele é precocemente velho, que aos trinta e cinco tem o ar de ter cinquenta, se bem que, pelo que parece, pelo que ele próprio reconhece, não tenha estado na guerra nem exercido um mister penoso ou pouco saudável, nem tenha nunca estado gravemente doente, em todo o caso com essas doenças de que nos curamos – ou morremos – com a ajuda de injecções, soros ou bisturis, e no entanto vive permanentemente neste estado de terror, como alguém que temesse não um perigo limitado no espaço e no tempo de que é possível afastarmo-nos por um momento, que é possível esquecer, mas um perigo pegado a ele, inseparável dele, como uma úlcera, um cancro, de maneira que essa obsessão é a do seu contrário, como os ladrões têm a obsessão da honestidade, as prostitutas a da respeitabilidade, […]. Porque são precisamente o oposto de tudo isso, como ele é (ele, pensei eu, agora vagamente zangado, ele, a sua doçura, a sua catastrófica candura, a sua catastrófica boa vontade, o seu catastrófico dom de atrair chatices, como outros atraem os cães ou o dinheiro, de comunicar, de espalhar à sua volta os sarilhos, o caos, a confusão, a sua maneira não só de se mover mas de nos arrastar consigo – como o nadador em perigo afoga o que veio em seu auxílio – nesta atmosfera peganhenta, as suas histórias insolúveis, os seus discursos confusos, enredados) exactamente o contrário dessa vontade de ordem, de estabilidade, dessa concepção obstinadamente escutista e optimista do mundo a que ele se agarra, que procura de todas as maneiras preservar, considerar verdadeira contra a própria evidência…» (O Vento, pp. 168-9).

Não há remédio para isto. Senão fazer como o Senhor José, esse herói improvável de Todos os Nomes: avançar na escuridão de fora com a escuridão que trazemos dentro. No fundo foi isso que trouxe aqui o projecto que fiz com a Terceira Pessoa. O Rastro, Margem, Clarão terá, talvez, como a sua mais bela e franca virtude, o ter sido o pretexto para que pessoas diferentes, mas com interesses relativamente comuns ou contíguos, se pudessem juntar, estar à mesa, sair à noite. Partimos da sua escrita. Uns já a conheciam. Outros ficaram a conhecer que o Rui existe e que existem livros seus. Nada mais natural do que não saber. Nada mais natural do que deixar-se levar, depois, por esse impulso de descoberta, quando ele irrompe misteriosamente pelo avesso de nós. E isto tanto serve os livros como os amigos que se fazem, tudo o que nos fecha na escuridão que somos, tudo o que nos abre à noite dos outros. Pois só então a literatura começa, se é a literatura o nome que vinga: a literatura, o teatro, os intervalos de existir. Só então as palavras se tornam palavras e, sendo palavras, fazem do mundo este lugar onde as coisas ainda acontecem. Onde há a possibilidade de esse ainda acontecer.

Foi essa possibilidade, discretamente feliz, que sublinhei na página 22 do seu livro mais recente: «[…] hoje, não há um movimento neste quarto, só ruídos como nomes mal pronunciados. Ou sou eu que estou desatento aos novos mistérios?»

Estar desatento é uma bênção. Uma bênção profana, como profanos são as estátuas de santos e o comércio das velas, mas nem por isso é desfeito o milagre de saber que existem o pequeno pó das túnicas, o crepitar do lume, a cera derretida. Outros mistérios da liberdade livre. Desatento, o susto recua. Mais coisas se dão aquém da catástrofe. O real é grande. E é uma palavra bonita, pequena e bonita: o real. O mais difícil de tudo, dizia Deleuze, é crer nele o bastante para que uma pausa, por mais terrível que seja, não seja a morte, nem como tal vivida. how ‘bout no longer being masochistic?how ‘bout unabashedly bawling your eyes out?how ‘bout not equating death with stopping? (Há que lembrar, até, o que não esqueci: a voz da Alanis, a compaixão ante o sem-fundo generoso das coisas, a Índia dessoutra viagem que é, de todas, a mais infindável.) Para que as palavras não pareçam sempre atreladas àquele peso inamovível que, de facto, não têm – excepto em mim, às vezes, quando este erro de percepção se esquece do erro que é e fica pedrado num atro instante de vida. E a vida, escreveu-o o Rui, é só às vezes. A meio do que não começou, a meio do agora, e sempre agora, que enfim recomeça, melhor: continua, esquecido de si na onda da tarde.

 

[15:24]

No final da estreia de Querer-se morrer confortavelmente na dor, em Castelo Branco, segui com o Rui e o amigo até ao sítio onde se estacionara o carro. Foi comovente ver o Rui comovido. Amparado pelo amigo, não parava de falar, de evocar o que retivera do espectáculo: o distinto som do melro, o distinto som da rola, a estrutura férrea da cama e de como o lembrava de uma cama que foi sua. Dizia sentir-se lido: que os corpos do Óscar e da Filipa, o declínio daquela casa, a espessura sonora de pássaros e voos e canos de água a pingar e ruídos de rua, em tudo ele via uma intimidade inacessível, assim como é inacessível a intimidade que nos seus textos se espraia e se dissolve. Não se trata de reconhecimento, de elos cerzidos entre o que escreve e o que viu em cena – mas não me choca, de todo, que a um homem de 75 anos seja concedida essa pequeníssima vaidade de, pelo menos ali, sem secretários de Estado nem altas patentes da chusma letrada, sentir que dos seus livros nasceram outras coisas, outros rasgos e experimentações. Sentir-se no direito a dizer eu, a usar determinantes possessivos: os meus textos, a minha escrita, a minha intimidade.

Continuava a falar, num entusiasmo adolescente. Não ligava nenhuma ao lajedo molhado, à aparição dos postes, aos desfalques no passeio. Cambaleava pela rua como se a hipótese de uma queda nem sequer se colocasse. Parávamos de vez em quando, inspirava mais fundamente, retomava o fôlego – e mesmo assim falava, insistia em enumerar as coisas vistas. Outra vez os pássaros, outra vez o jogo de actores.

Não sei que pormenor do texto dito pela boca do Óscar ou da Filipa, ou então que fissura, detrito ou jorro de tinta no cenário, abriram naquele torvelinho de impressões uma clareira para esta afirmação: que a imagem de uma boa morte seria morrer em viagem, atravessando a Europa de comboio. Calei-me sem saber o que dizer. Sustive a respiração, terei mordido o lábio como se, de dentes cerrados, travasse o curso a qualquer palavra desavinda, a qualquer lugar-comum. Agi em silêncio, quer dizer, continuei o caminho, um passo a seguir a outro, o amigo do lado de lá, eu do lado de cá, aquele silêncio engessado, o gesto trémulo de respeito que nos protege num velório, numa situação difícil, acenando com a cabeça ao que ouvimos dizer, negando quando é esperado que neguemos.

E o Rui: abandonar a vida devagar, ao ritmo das estações e apeadeiros, num sono que se vai destilando, a luz diminuindo, a cabeça a descair até ficar no peito a sua sombra reduzida. «esta poética da viagem: a sinuosa linha deste sonho: de momento a momento visão cinética, indo sempre na loucura de outro porto, até ao regresso ao chão desaprendido» (O Mensageiro Diferido, p. 33). «morrerei rodeado de pessoas que nunca vi, de casas onde nunca entrei, de línguas que não decifro» (Barro, p. 60). «gostaria que a minha morte fosse a minha fala, decrescendo» (Rostos, p. 80). Noutro país, entre países, sob vozes estrangeiras, e um revisor aflito, e uma paragem brusca, o bisbilhar dos passageiros, o fremir dos telemóveis – mas isto já é filme a mais. O Rui apenas disse: gostava de morrer em viagem. E ria-se como um perdido.

 

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FICHA ARTÍSTICA E TÉCNICA DO PROJECTO RASTRO MARGEM CLARÃO:

Direcção Artística_ Ana Gil e Nuno Leão
Criação Performativa e Interpretação_ Ana Gil e Nuno Leão; Filipa Matta e Óscar Silva; Maria Fonseca e Miguel Moreira
Fotografia_ Rui Dias Monteiro, Susana Paiva, Valter Vinagre
Fotografia de cena_ Alípio Padilha, Helena Gonçalves, Nuno Leão, Susana Paiva, Tiago Moura, Valter Vinagre
Ensaio Teórico_ Diogo Martins, Eunice Ribeiro, Vítor Ferreira
Pesquisa e Teoria_ Diogo Martins
Direcção Técnica_ Pedro Fonseca / Coletivo ac
Design de Comunicação_ Cátia Santos
Produção Executiva_ Bruno Esteves
Produção_ Terceira Pessoa – Associação
Financiamento_ Direção-Geral das Artes / República Portuguesa – Cultura, Cine-Teatro Avenida Castelo Branco, Teatro-Cine Torres Vedras, Teatro Municipal da Guarda
Residências de Criação_ Fábrica da Criatividade, Rua das Gaivotas 6, Cão Solteiro, DeVIR/CAPa – Centro de Artes Performativas do Algarve, O Espaço Do Tempo

A escrita deste texto foi financiada por fundos nacionais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito do projecto de pós-doutoramento Ousar corromper: (o)caso retratístico em Rui Nunes (referência: SFRH/BPD/114849/2016).

é doutorado em Teoria da Literatura. No âmbito do seu pós-doutoramento, integrou o projecto “Rastro, Margem, Clarão”, da associação Terceira Pessoa, explorando a escrita de Rui Nunes. Em 2020, publicou o livro “Na imprecisa visão do vento” (com Susana Paiva) e uma antologia poética de Raul de Carvalho.

Número #02
1. Nietzsche contra VAR ou a arte trágica de Maradona
2. caminhar desenhando o desejo, desenhar desejando o caminho, desejar o caminho desenhando-o,
3. Que raio de barco atravessa que raio de mar a caminho de que raio de porto? (II)
4. Ossos
5. . do escuro : Madonna dei palafrenieri .
6. Poema Sumário das Livrarias do Porto
7. O fim do ars gratia artis
8. La materia invisibile
9. Brilho
10. Era uma vez uma rosa negra
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