Epigrama
do grego ἐπί-γραφὼ
‘sobreescrever’
epigramas por Vera Faias Fonseca
fotografias com Vera Faias Fonseca, por Mariana Castro
Epigrama um
Uma boca abre-se e segreda: as côdeas e os muros.
Epigrama dois
Em dias de meteorologia endócrina incerta e difusa, deveria ser possível dobrar a alma, de forma bem minuciosa, replicando dobra atrás de dobra, de forma a eliminar qualquer vestígio de aresta e ângulo obtuso. Depois, já reduzida à sua condição de mínimo, enquadrá-la do avesso: um alvéolo pulmonar, uma válvula cardíaca seriam moradas adequadas. Do lado exterior, ficaria, portanto, um corpo sem alma. Os mais desatentos descalçariam os sapatos e ficariam de pés nus à beira de um simulacro.
Epigrama três
Sabes que para o pão te assentar bem no estômago tens de digerir o magma e aplacar as aporias.
Tu és a de trás e a de diante.
Epigrama quatro
Mondar a alma. Retirar-lhe nós e impurezas. Tudo aquilo que faz travar-lhe o mundo na garganta. Seria isso que fazia a minha mãe e todas aquelas mulheres agachadas de sol a sol? Mondar a alma, delas e do mundo. Terei eu herdado dela, além das varizes, o peculiar labor de arrancar das entranhas longas frases cheias de nada? Para, rasgando a terra uma e outra vez, alcançar o fundo da palavra única, muda e indizível. Como uma tormenta aplainada.
Epigrama Cinco
As côdeas e os muros. É preciso caiar tudo vez e vez sem fim. Por cada demão dada, um horizonte empurrado para a orla do Amanhã. As mulheres de corpo franzino e pele torrada sobem nas suas escadas. O sol apieda-se e as suas mãos, diferentemente de Ícaro, tornam-se asas inelutáveis.
Epigrama seis
E um corpo em movimento continua a ser a mais perfeita morada para tecer estórias, teorias, efabulações. Num hálito sustido, o frémito da incandescência abre-se a cílios e células. Os músculos, antes contraídos de hesitações, dilatam agora a precisão do incerto. Valha-nos aquilo que não sabemos.
é fotógrafa e realizadora, estudou Cinema e fez Mestrado em Filosofia, Estética, desenvolvendo ainda investigação em Fotografia. Filmou em festivais de cinema internacionais, integrou a exposição do MNAC em 2015 e o seu filme "Maria Lucília Moita" encontra-se patente no MIAA, Abrantes. Retratou as cabines de projeção de cinema de Lisboa em 2017 e tem fotografia publicada em edições como “A Torção dos Sentidos” (Documenta, 2020).
é licenciada em Línguas e Literaturas Clássicas pela FLUL e doutorada em Estudos Visuais e de Género pela Universidade de Utrecht com uma tese sobre a obra da pintora Paula Rego. Leitora do Instituto Camões na Universidade de Estocolmo e conselheira cultural na Embaixada de Portugal, viveu anteriormente nos Países Baixos e Chile. Tem particular interesse pelos cruzamentos artísticos entre imagem, movimento e texto, quer no campo da docência e investigação, quer no campo da criação.