[Sem a valorização do perigo de perder certezas e a procura do desconforto, não há Leitura Furiosa]
[Regina Guimarães entrevistada por Mafalda Pereira]
(…)
espírito santo de orelha
as palavras viram novas
entre rotas e derrotas
nos tímpanos duma velha
buscando sinais de vida
na luz, nas flores, nos bichos
e fabricando esperança
com novas matérias primas
o riso, a graça, a dança, o canto,
a fala, o sonho, a pausa, o espanto…
Começo por lembrar a última estrofe do poema “Pandemónio Pandomínio” e a ilustração que o acompanha, elaborados, em 2021, no âmbito da Leitura Furiosa Porto, por Regina Guimarães e PAM com Carlos, Isabel, Paula e Elisa na Associação Qualificar para Incluir, no Bonfim. Creio que foi precisamente a partir da leitura deste texto e desta ilustração que comecei a interessar-me por este projecto que, apesar da sua originalidade e da sua relevância social, permanece ainda pouco conhecido e estudado. Realizada em França e em Portugal, a Leitura Furiosa consiste num encontro anual entre escritores, ilustradores e pessoas afastadas da leitura. No primeiro dia, o escritor encontra-se e conversa com um grupo de não-leitores e, tendo em conta esse diálogo, escreve um texto que é apresentado e discutido com o grupo no dia seguinte. Na segunda sessão, o ilustrador junta-se e procura traduzir numa ilustração o texto apresentado. De seguida, os grupos visitam uma livraria ou uma biblioteca e prepara-se a publicação, que será distribuída no dia seguinte, com todos os textos e ilustrações elaborados nas várias cidades. No último dia, realiza-se uma sessão de apresentação do projecto, juntando os participantes e o público em geral, onde se distribuem os resultados, que funcionam como um testemunho, um rasto da singularidade destes encontros. Poeta, dramaturga, argumentista, tradutora e cineasta, no fundo, uma artista de ofício múltiplo, Regina Guimarães coordena a Leitura Furiosa no Porto, desde 2007. Para compreender melhor a origem, o propósito, as particularidades e a história do projecto, propus-lhe uma entrevista. Publicam-se aqui alguns fragmentos da conversa que tivemos (entre e-mails e zooms), na esperança de que a minha curiosidade pela Leitura Furiosa e o generoso testemunho de Regina Guimarães possam despertar interesse e reflexões sobre o projecto, que creio ser dos poucos, no nosso país, que, ao compreender que a palavra continua a ser um privilégio de alguns, “fabrica esperanças” na potência da escuta e dos encontros entre pessoas de diferentes meios sociais, lembrando que a poesia se encontra em todos e todas nós.
O que é a Leitura Furiosa?
R.G: A Leitura Furiosa é um encontro anual, festivamente sisudo, um encontro improvável… A Leitura Furiosa Porto dura quatro dias. É um momento privilegiado de encontro entre pessoas que estão zangadas com a leitura, a escrita (e o mundo…) e escritores. É um momento único que permite a um não-leitor aproximar-se da elaboração da escrita graças ao contacto com um escritor. É também um tempo em que esse não-leitor zangado pode fazer ouvir a voz, porventura imaginar um outro caminho para a sua vida. A Associação Cardan, fundada em 1978, fabricou a Leitura Furiosa. A actividade da Associação Cardan dirige-se às pessoas com dificuldades sociais e económicas. Aliás, foi a consciência de que o acesso ao saber não é igualitário que levou à criação do Cardan… Além das sessões de leitura e de conversa em lugares carenciados da região da Somme (França), o Cardan desenvolve acções de aprendizagem ou de reaprendizagem da leitura e da escrita com adultos.
Qual é o objectivo do projecto?
R.G: Eu acho que em relação à Leitura Furiosa como, aliás, em relação a outras actividades que são designadas genericamente como «comunitárias» – para realçar que se está a trabalhar com pessoas que fazem parte de comunidades menos privilegiadas do que aquelas em que nós nos inserimos, as pessoas normalmente têm sempre tendência para imaginar horizontes muito largos. As pessoas, por exemplo, acham que é possível fazer oficinas de escrita no quadro de um grupo em que as pessoas não sabem escrever ou acham que em pouco tempo vão pôr um grupo de pessoas que têm dificuldade em pôr o pé direito à frente do esquerdo a fazer um espectáculo teatral. Isso, em geral, dá em linha direta umas grandessíssimas aldrabices porque dissimulamos obstáculos que provêm das próprias dificuldades das pessoas envolvidas. As pessoas constatam-nas e depois, para salvar a honra do convento, é uma questão de colagem, e de invenção ad hoc duma coisa apresentável. A Leitura Furiosa tem um objetivo muito pequenino e quando se fala disso as pessoas ficam logo muito desconcertadas, para não dizer mesmo desiludidas. A Leitura Furiosa não quer ser mais do que um encontro entre pessoas que escrevem e pessoas que, em geral, não lêem, que o Luiz Rosa designou como pessoas “zangadas” com a leitura (e também com a sociedade frequentemente). Desse encontro resulta um texto e desse texto resulta um impulso para alargar a vivência transformada em texto para uma ilustração que não precisa de o ser no sentido explicativo, aliás, é preferível que não o seja e, depois, alargar texto e ilustração para uma leitura pública com distribuição dos resultados escritos e desenhados. Entre a ilustração (que é a segunda sessão com os participantes) e a leitura pública, há um passeio no qual nem toda a gente participa porque geralmente há problemas para tirar as pessoas do local onde elas estão. A Leitura Furiosa acontece todos os anos e é uma coisa muito pequenina. Quando uma pessoa participa pela primeira vez, acho que nem percebe exactamente em que é que está a mexer.
Porquê o nome Leitura Furiosa se o projeto inclui tanto escrita como ilustração?
R.G: O nome Leitura Furiosa foi dado pelo Luiz Rosas. Existia, há umas décadas, um programa sobre livros na televisão francesa, intitulado «La Fureur de Lire». O Luiz Rosas achou que era preciso criar um evento em torno da leitura destinado aos muitos humilhados e ofendidos arredados do prazer de ler. Então escolheu esse nome (feliz). E como ele é brasileiro de naturalidade, deu-lhe um nome em português. Escrever um texto é traduzir por palavras sentimentos, acontecimentos ideias, desejos, dúvidas, etc… A ilustração percorre um trajecto de tradução semelhante… Pelo menos, tal como ela intervém na nossa Leitura Furiosa…
Como se deu o seu encontro com o projecto? Como é que a Leitura Furiosa começou no Porto?
R.G: A Leitura Furiosa nasceu na Association Cardan, com Luiz Rosas, em Amiens, e chegou a Lisboa, à Associação Abril, em 2000, pela mão da escritora Eduarda Dionísio. Em anos mais recentes, a Leitura Furiosa Lisboa tem acontecido na Casa da Achada-Centro Mário Dionísio. Foi graças ao convívio com a Eduarda Dionísio e na sequência da minha participação numa das edições da Leitura Furiosa em Amiens, que eu ganhei coragem para trazer o encontro para o Porto, com o apoio, desde a primeira hora, do Museu de Serralves. Eu participei numa sessão em Amiens precisamente numa prisão de menores. O ambiente carceral em França é bastante mais duro do que cá. Fiz aquilo que me disseram que era suposto eu fazer. Entrei, comecei a falar com as pessoas, as pessoas tinham imensa necessidade de se contar, de falar da sua vida, de como é que tinham ido parar ali. E eu saí de lá com imensas notas, a partir das quais escrevi o texto. E, quando acabei o meu trabalho, voltei à prisão e disseram-me que aqueles textos não iriam ser lidos na sessão pública porque tinham sido censurados. E porquê? Na verdade, eu limitara-me a dar forma ao que as pessoas tinham dito e não era viável, aos olhos das assistentes sociais, que aqueles textos saíssem e fossem ditos em voz alta na casa da cultura de Amiens. Aí comecei a perceber até que ponto nós estávamos a tocar numa coisa séria. Os textos, finalmente, foram lidos, eu até tive direito a desculpas do Ministério da Justiça e, houve um guarda que, no fim, que me disse “Olhe, a senhora foi a pessoa que me convenceu a fazer uma reconversão profissional. Já não quero ser guarda prisional, vou estudar para ser professor”.
Uma vez que a Leitura Furiosa tem lugar em Amiens, em Lisboa e no Porto, tendo também já sido realizada em Guimarães e em Beja, que diferenças encontra entre os processos e os resultados obtidos nas diferentes cidades?
R.G: O protocolo é o mesmo. Cada grupo – eu diria mesmo cada indivíduo – o interpreta e cumpre à sua maneira. Nas outras cidades, fazem os encontros em três dias, mas eu decidi que os fazia em quatro porque não há nenhuma associação a apoiar-me. Tenho que abraçar todas as actividades e ter a certeza que elas acontecem, que as pessoas chegam a horas, que não há problemas nos sítios, etc. e isso não é possível em três dias.
Luiz Rosas, inventor da Leitura Furiosa, mencionou que “[e]ste encontro de pessoas zangadas com a leitura, a escrita e os escritores [se] inspira no poder dos momentos insólitos”. Penso que a Leitura Furiosa também se distingue por ser uma prática artística insólita. Que especificidades encontra no projecto?
R.G: A meu ver a especificidade mais relevante é oferecer ao escritor a oportunidade de “escrever com e não apenas escrever para”. No caso dos Zangados com a Leitura, a mais relevante especificidade reside na oportunidade de assistir ao parto dum texto. Uma outra característica importante é o ritmo vertiginoso da Leitura Furiosa que, além de escritas e ilustrações, implica uma publicação, traduções para os textos serem difundidos em Amiens, uma visita a lugares de livros (habitualmente livrarias), uma apresentação pública com a participação de músicos, etc.
O que é para si “escrever com” e de que forma é que os textos que escreve na Leitura Furiosa se distinguem da sua prática de escrita regular?
R.G: «Escrever com» é integrar tanto quanto possível o dito e o não dito, o som e a fúria, o sussurro e o silêncio, a raiva e o apaziguamento que caracterizam cada um dos encontros nos textos que escrevo imediatamente a seguir às sessões. Tirando o facto de que eu continuo a ser a mesma sujeita, claro que os textos da Leitura Furiosa se distinguem dos meus poemas. Mas os poemas distinguem-se dos argumentos. E os argumentos das traduções. etc. A única diferença é que eu ali me coloco numa situação de escuta (que é também a situação da poesia, porque quem não ouve não escreve, acho eu…) Só que há um protocolo, há um tempo em que isso acontece, há umas pessoas com quem isso acontece, portanto é com essas pessoas que eu tenho de escrever. Eu não vou escrever um lindo texto para lhes agradar. Vou escrever um texto que tenta integrar, que tenta traduzir o melhor possível, aquilo que aconteceu ali, o que eles disseram e até o que eles não disseram, mas que era perceptível.
Considera que os textos da Leitura Furiosa são da sua autoria ou são sempre fruto de uma cocriação?
R.G: Essa questão coloca-se para todos os textos. Os textos são «meus» na medida em que eu zelo por eles….
Qual a diferença entre o papel dos escritores e dos ilustradores nestes encontros e de que modo é que comunicam entre si? É sempre fácil lidar com as ilustrações que têm feito a textos seus ou por vezes sente algum desconforto?
R.G: A Leitura Furiosa é, e quer continuar a ser, experimental. Ou seja: é um evento imperfeito, uma experiência que se confronta com o atrito do real. Nunca senti desconforto por parte dos ilustradores. Senti diferenças de proximidade. Senti preocupação de colar ou descolar do texto. Senti vontades de fazer participar os Zangados com a Leitura. E por aí fora…
Num texto publicado na obra La Mort Buissonnière, Saguenail considera que a experiência do escritor na Leitura Furiosa é bastante violenta dada a velocidade com que o texto tem de ser concebido. Também sente essa violência? Ou a violência também advém do lugar marginal que o escritor ocupa face ao contexto dos não-leitores com que trabalha, uma vez que, no seu texto “Ó DA CASA”, posfácio a Mais de Mil Anos, de Miguel Cardoso, que inclui textos deste autor realizados no âmbito da Leitura Furiosa, a Regina considera que “todos os participantes devem correr o risco / de colocar em perigo algumas certezas e comodidades”?
R.G: Sem a valorização do perigo de perder certezas e a procura do desconforto, não há Leitura Furiosa.
No seu poema “Prova Oral”, escrito no Centro Educativo de Santo António, com Stuart, Dentola, Avô, Big Mama, Kico, Sonder e Ratinho, parece que quem escreve foi precisamente colocada à prova…
PROVA ORAL
perguntas-me à queima roupa
se acaso eu não choraria
sentindo bater a porta
da cela na minha cara
às sete horas de ponta
quando a cidade desperta
para a vertigem da noite
e eu te digo choro sim
quando se fecha uma porta
dentro de ti ou de mim
perguntas-me à queima roupa
se acaso eu não sei ainda
que é difícil o teu bairro
de todos o mais difícil
mais cinzento mais violento
por todos abandonado
à razão do sofrimento
e eu fico na incerteza
do que terás a ganhar
quando me queres assustar
perguntas-me à queima roupa
se eu já vi morrer à fome
se conheço a cor do homem
que tem fome de morrer
e se salva em se perdendo
por não ter nada a perder
porém talvez tu não queiras
escutar o que aqui me traz
para ouvir de mil maneiras
aquilo de que és capaz
R.G: Houve uma altura em que a maior parte dos miúdos que iam parar ao Centro Educativo estavam deslocados de bairros ditos difíceis de Lisboa. Essa situação não era fácil porque eles estavam de alguma forma desterrados no Porto. A impossibilidade das visitas… O que é certo é que havia assim uma onda do género meter-me muito medo e apresentarem-se como grandes criminosos. Eles eram os melhores do bairro e que no bairro deles quanto pior, melhor. Então, eu escrevi este texto em resposta. Queria dizer-lhes que não me intimidavam, que eu me sentia ali a passar uma espécie de prova oral, não é? Mas que na verdade a minha experiência de vida me permitia, embora nunca tivesse vivido as situações que os levaram/levavam a comportar-se como se comportavam, responder às fitas deles. Cada pergunta tem uma espécie de ameaça velada. Mas eles têm uma paleta de vivências e de sentimentos que, embora possam não conseguir descrever, sistematizar, é muito grande, embora sejam muito novos. E por isso a questão literária entronca também aí, ou seja, é preciso que eles se dêem conta dessa riqueza no sentido positivo ou negativo… Não são coisas das quais se fale simplificadamente. Eu acho que é para isso que serve a literatura, não é? Porque só complicando é que as coisas se tornam mais simples e mais perceptíveis.
Creio que Luiz Rosas fala da questão do “conforto da exclusão”. De que forma é que a Leitura Furiosa luta pelo desconforto? Ou de que forma é que esse desconforto é necessário?
R.G: O conforto da exclusão de que fala o Luiz Rosas é a desistência, por parte dos excluídos, de mudar de vida. Desistir é mais confortável do que lutar. As pessoas pensam muitas vezes quando começam a fazer trabalho neste tipo de áreas, que os «excluídos» estão sempre muito ansiosas por verem filmes ou escreverem textos, etc. E isso não é verdade. É muito difícil entusiasmar as pessoas. Há um trabalho que é preciso fazer para extirpar as pessoas à espécie de torpor em que elas se instalaram. Quando lhes é pedido minimamente que estejam lá presentes e a ouvir e a falar, estamos na verdade a tirá-las deste conforto, não é? Normalmente, ninguém lhes pede opinião nenhuma e eles vivem muito bem assim porque não têm de se chatear a ter opiniões. Acho que o Luiz tem muita razão quando fala disso, porque é um lugar-comum bastante falso pensar-se que as pessoas estão numa espécie de sede e fome de actividades culturais quando, na verdade, não estão. É preciso reenquadrar tudo isso e mostrar porque é que estas atividades são importantes e boas para as pessoas se abrirem a elas.
Os participantes revêem-se sempre no texto que escrevem ou as reações são sempre muito diferentes?
R.G: Os textos são dados como fechados quando os grupos consideram que o trabalho do(a) escritor(a) ecoa a sessão que os inspirou. Os participantes ficam frequentemente maravilhados, hipnotizados. Mas também acontece não estarem de acordo e isso dá discussões muito interessantes que obrigam o escritor a corrigir trajectórias. É suposto que as pessoas discutam sempre o texto, se não gostarem do que lá está e isso já aconteceu. Aconteceu com pessoas que tiveram de explicitar e justificar aquilo que escreveram. Normalmente acaba em bem, ou seja, quem ouve acaba por perceber, mas os escritores e as escritoras ficam muito desestabilizados quando tal acontece. Fizeram as coisas o mais empenhadamente possível e não estão à espera que uma pessoa que é meio analfabeta lhes diga “não, mas isso não tem nada a ver com aquilo que a gente disse”.
Considera que a Leitura Furiosa se centra numa poética da escuta?
R.G: Existe escrita sem poética da escuta? Existe leitura sem poética da escuta? A Leitura Furiosa é apenas o que é, tem a circulação que tem. Eu preciso de me mover em escalas humanas. Aliás, acredito que futuro, se futuro houver e crença/querença para o construir, passará por aí.
Qual será o papel da crítica face a este projeto? Serão os seus resultados criticáveis?
R.G: Tudo é passível de ser criticado. E, de preferência, tudo deveria ser interna e organicamente criticado. Porém, a actividade dos críticos encartados, na sua esmagadora maioria, não me parece ter vivacidade suficiente para nos fazer falta.
Para mim, esta ilustração, publicada na edição de 2023 da Leitura Furiosa, ilustra muito bem o intuito do projeto.
A Leitura Furiosa procura abrir uma porta para o que se encontrava escondido? Uma porta para a liberdade, para a palavra poética e para a imaginação?
R.G: A Leitura Furiosa quer abrir uma porta e pôr lá o pé para ela não ser imediatamente fechada. E pôr lá o pé é manter durante aquele pequeno tempo o interesse por aquilo que está ali a acontecer. Mas também não podemos exagerar na expetativa porque é impossível fazer tudo em 4 dias.
Como é que tem medido o impacto social e educativo do projeto ao longo de todos estes anos? Na introdução à antologia da Leitura Furiosa a Regina considera que este é o único projecto que, tanto quanto sabe, coloca o problema da iliteracia como deve ser e “propõe um começo de resposta generosa”. Em que medida é que isso acontece?
R.G: Eu não sou académica, não sei medir esses impactos. Pessoas não são balas nem miras nem alvos… Não me passaria pela cabeça fazer a avaliação do que aconteceu. E aliás desafio qualquer pessoa a fazer isso, a não ser mentindo, que é aquilo que normalmente se pede às pessoas e de forma o mais convincente possível para que as instituições que dão o dinheiro fiquem com muito boa consciência de terem financiado quem se envolve nestes projetos. Que façam uma espécie de uns milagres, em que eu profundamente não creio. Quanto ao resto, eu respondo a isso nesse texto, já antigo. A meu ver, «criar hábitos de leitura» é o contrário de «criar desejo de leitura».
Em “Ó da Casa”, a Regina evoca a formulação de Isidore Ducasse “a poesia deve ser feita por todos, não por um” e diz que podemos “procurar nestes textos [da Leitura Furiosa] moradores de leitura e moradas de leitores”. De que forma é que a Leitura Furiosa cumpre ou visa cumprir essa injunção de Ducasse?
Visa sim. Mas não só. O Saguenail, mais amiúde do que eu, cita Ducasse. Mas sim, é uma coisa que eu penso, embora também se deva expandir a ideia de poesia. Nesse texto também queria expressar uma espécie de gratidão relativamente à maneira como o Miguel Cardoso sempre se envolveu na Leitura Furiosa. Às vezes isso não acontece, há aquela onda do “para quem é, bacalhau basta” e isso põe-me piursa. O envolvimento da pessoa é fundamental. Nós queremos que eles se envolvam na escuta dos nossos textos, por isso também temos de estar igualmente envolvidos no fabrico daquilo que vamos ler-lhes. Nessa intimidade com a génese do texto, com as sementes que fizeram o texto florescer, há uma coisa indestrutível. Acho que as pessoas escrevem porque têm a esperança que haja outras pessoas que as percebam melhor do que elas mesmos. Quer dizer de alguma forma, a escrita é uma maneira de viajar no tempo muito peculiar e, portanto, a escrita está sempre à procura de “moradas de leitores”, e não se esgota. Mesmo quando a pessoa escreve, digamos o autor do dia de hoje não é o autor do dia de amanhã. Se eu escrever agora qualquer coisa e amanhã de manhã abrir o computador, penso porventura “mas como é que eu escrevi isto?”, e as coisas que se escrevem são fruto de um manancial, de um fluxo de palavras e de ideias que nos abraçam, e que de alguma forma nos ultrapassam. Não quer dizer que nós não sejamos responsáveis por aquilo que escrevemos… E tudo isso está em jogo numa sessão da Leitura Furiosa, a não ser que as coisas corram muitíssimo mal. Na Leitura Furiosa, tudo reside em estarmos uns com os outros, que é uma coisa muito difícil. Abrir parêntesis na vida não é nada fácil e se conseguirmos só isso – estarmos uns com os outros, já há matéria para o resto. Além disso, é importante que esses textos circulem, por isso é que fazemos o bloco com os textos e ilustrações e o distribuímos a todas as pessoas na última sessão. É importante que os resultados viajem, que as coisas caiam noutras mãos e noutros olhos, toquem outros ouvidos e outros corações, para serem lidos de outras maneiras. Portanto a poesia é feita por todos e também recebida por muitos. É importante que a poesia não feche as pessoas naquilo que elas consideram ser o seu universo poético, porque aí acho que ficam ainda mais prisioneiras do que estavam ou julgavam estar.
Num outro contexto, a Regina disse que “as musas são os próprios leitores”…
Sim, essas figuras das musas são completamente incompreensíveis se não tivermos em conta isso. Um texto aspira a ter destinatários, não é? É claro que pode aspirar a isso de diversas maneiras, mas para mim as musas são as divindades que representam esses destinatários.
is a Ph.D. candidate in Literary, Cultural, and Interartistic Studies at the Faculty of Arts and Humanities of the University of Porto and in Literary Studies at the University of Vigo. She graduated in Portuguese Studies from the Faculty of Social Sciences and Humanities of the University Nova de Lisboa (2020) and completed her Master's in Literary, Cultural, and Interartistic Studies – Comparative Studies and Intercultural Relations branch at the Faculty of Arts of the University of Porto in 2022.
(Porto, 1957) is a multifaceted artist, also known as Corbe. In addition to poetry, she has devoted herself to areas such as theater, translation, songwriting, dramaturgy, drawing, art education, criticism, video, screenwriting, and production. She has taught at various institutions and served as director of the film magazine A Grande Ilusão. She co-founded the band Três Tristes Tigres and the Mário Dinísio Center - Casa da Achada. In recent years, her work as a screenwriter and playwright has intensified. She lives and works with Saguenail since 1975. Hélastre is the emblem of their shared work [helastre.wordpress.com].