skip to Main Content

Platitudes 3 (excerto)

 

              Deixei-me ficar sentada no banco de metal vendo o autocarro afastar-se lentamente. Uma doçura morna empolgava-me a parte de baixo das coxas coladas à chapa perfurada. Percorri com a ponta dos dedos os pequenos círculos, de uma rigorosa simetria, marcados na pele. Não tardaria a pele a regressar à costumeira lisura, inevitavelmente branca, sem o mínimo vestígio da distinção rosácea do molde de metal. O autocarro cruzou por fim o limiar da longa estação, iluminando-se à medida que tomava a rua e seguia o seu curso à direita. Levantei-me a custo e arrastei os pés e a indolência para a divisão ao lado. Um cheiro intenso a borracha queimada entrava pela exígua abertura circular no topo da parede em frente à porta, por onde chegava também a pouca luz que iluminava o compartimento. Num dos cantos, uma pequena estante de madeira, vazia, coberta por uma compacta camada de pó, o único objecto no espaço, sublinhava a nudez asfixiante das paredes. Sentei-me, exausta, no chão, debaixo do umbral da porta. O corpo levou algum tempo a libertar-se da estranheza da casa, da sua inutilidade crónica, do seu maciço vazio. Estranha como uma almofada que se estranha. Ou uma pele. Desmanchei o mecanismo do relógio de parede peça por peça, rebite por rebite, osso por osso, e espalhei as horas pelo chão, como quem espalha cinzas sobre um inefável campo de flores. Não dei pelas manhãs a começar pelo avesso, como previra e desejara. Pelo contrário, é a violência metronómica dos ponteiros do relógio que assegura o possível de conexão vital. O que resta do relógio desfeito, do tempo desgovernado, é da ordem da morte. Aos mortos não interessa a passagem do tempo. Só os vivos continuam a contar o tempo que só seria o dos mortos se fossem vivos, a assinalar os seus aniversários, o mais das vezes dois, o do nascimento e o da morte. Tornei a montar o mecanismo do relógio de parede peça por peça, rebite por rebite, osso por osso, até que sobrou apenas um acumulado de metal e poeira, vestígios de morte, de um tempo incontável, e, sim, recomeçaram então as manhãs desfiguradas e trôpegas, excrescentes. Lancei as mãos às algibeiras das calças à procura de convicções sólidas. Um plano para seguir à risca, sem urgência, passos lentos, certos, de olhar firme no detalhe. Cada gesto, uma sala de espera. Conseguir isolar palavra por palavra, torcê-las, despedaçá-las, e dos seus detritos compor um mapa dos dias. E o mesmo com os passos, os pestanejos, as bombadas do coração, os espasmos do fígado. Procurei, decidida e empenhada, tudo o que mexesse no interior das algibeiras das calças, até que um novo adiamento se impôs. Os seus lábios exalando pinho estavam já junto dos meus quando despertei, invadida por uma súbita explosão eléctrica que me atravessou das palmas dos pés ao que do meu corpo havia estilhaçado pelo quarto. Bom dia, querida, disse a cadeira, Bom dia, querida, disse a outra cadeira aproximando os seus lábios dos meus. Tentei sorrir e responder, tocar-lhes, beijá-las de volta, mas tinha as mãos cravadas na cama, repuxando o lençol, os pés retesados pressionando o fundo, o corpo formando um arco firme entre a nuca e os calcanhares. Dos lábios, só uma dormência dulcíflua, o azul da manhã a alagar-me a boca. Senti as suas quatro mãos a afagar-me vagamente o ventre enquanto, em vão, tentava abrir os olhos para apreciar os traços que compunham sobre a minha pele. Um uníssono suspiro. Um outro beijo. Um outro beijo. Bom dia, querida. Bom dia, querida. Os olhos por fim abertos ao mergulhar na sombra. Do lado de lá da estrada, um inferno de insectos derretidos pelo fulgor do meio-dia compunha várias camadas de peles encrespadas juncando o chão. Não sei se caminhava ou se era caminhada pelo frenético êxtase da rua a arder de febre, inchada de mercúrio, a carne e os ossos. O interminável edifício que me cobria de sombra, cadáver de um cinzento simétrico, parecia baloiçar como se atraído pelo inexequível alcatrão da estrada, um corpo dependurado desejando pousar. Do lado de lá da estrada, o imenso descampado a chamar, cântico de mel, voz de cristal, a mornura dos braços do estio, Calipso tecendo e fiando, a chamar, Vem, fecha os olhos e vem tornar-te imortal no lugar que é teu, no centro do centro, onde os náufragos reinam e o coração não sente. De olhos bem abertos, áridos, habitei a escuridão da manhã que teimava em não nascer. A triste balada do lado de lá da parede fora porventura apenas a pálida simulação de um sonho, um fogo-fátuo a recordar-me do lugar que me cabia, Espelho meu espelho meu haverá tristeza mais triste do que eu, definhada pela noite infinda. E nem o corpo colado à parede, vogando pela vibração da dança oceânica, me pôde adormentar. É por não seres desta dança, lembravam-me as feridas abertas que desafiavam a nudez do meu desistido corpo, É por não ser este oceano o teu que te queima a pele essa tão singular ruína. Permaneceu o escuro mesmo já pela manhã adentro, um nado-morto a fingir que luzia. Sacudi a cinza das pernas e levantei-me do chão com o cigarro aceso entre os dedos. A tarde prosseguia plácida pelo silêncio autêntico das tardes. Parei à porta do quarto de banho e olhei, ao fundo, cobrindo a banheira, o amontoado de roupa suja que, sempre crescente, sempre deformando, era o derradeiro sinal da passagem dos dias. Um acumulador de memórias. Talvez fosse preferível puxar-lhe fogo, abrir espaço para um imenso zero que inaugurasse um calendário plástico, manobrável a gosto. Que parcela de mim seria mensurável numa tão eminente pira? Deitei a ponta do cigarro na sanita e puxei do monte um lenço de seda, elegância fingida, o cheiro a álcool a fumo a olhos rasos de vómito. Conduzi-o lentamente pelo corpo, amarrotado, aconchegado entre as mãos, como se me lavasse, uma cobra renovando a pele. A chama do isqueiro agarrou as folhas pelos cantos. E alastrou. O muro de ferro, enferrujado pela persistência, corria para trás, devagar, ao meu lado esquerdo, à medida que eu avançava. A estrada, interminável, levava-me engasgada sempre adiante, infinda paciência, a puxar o tanto que podia por um motor que já só podia o que podia. E de súbito a chuva, e o fascínio nervoso, mudo, pela chuva. Começou parecendo uma estranha nuvem de flocos amarelo-torrado. Ao primeiro impulso de parar o carro e sair para o asfalto seguiu-se a decisão firme de continuar a acelerar o tanto que podia estrada adiante. O muro de ferro libertava-se da sua ferrugem, uma cobra renovando a pele, soprando a brisa fria do início da noite, para acumular o brilho com que retomaria o seu fulminante olhar sobre a estrada aos primeiros raios de sol do dia seguinte, e sucessivamente assim, depois, enferrujando renovando acumulando fulminando. Parei por fim o carro num intervalo da estrada, pés fora dos pedais mãos sobre as coxas olhos no volante, lá fora o semáforo verde gritando, Se é agora que posso avançar, então não avançarei, e do meu corpo parecerá que se liberta uma força inaudita de ser o corpo que habita este ponto morto. Era um ajuntamento desordenado de olhos mãos dentes cabelos, sorrindo sem ver, afagando sem escutar. Dei a volta à mesa e esgueirei-me para o quarto de banho, assim que fazê-lo não parecesse inconveniente. De porta fechada e água a correr, persistia ainda, do lado de lá, o burburinho áspero, contínuo, da fantasiosa conexão dos corpos planeados. A minha roupa cheirava a ranço alcoólico, a minha pele transpirava o vazio dos gestos circunstanciais. Pus a cara debaixo da água a correr, sequei-me como pude e regressei. Como calculara, ninguém dera pela minha ausência, do mesmo modo que ninguém dava verdadeiramente pela minha presença. E ainda bem. Sonhava frequentemente que me caíam os dentes enquanto nadava. Nada que me fizesse acordar sobressaltada, não era propriamente um pesadelo. Pelo contrário, aliás. Nadava quase sempre de costas e, enquanto seguia respirando ao ritmo das braçadas, sentia-os saltarem de cada vez que expirava, num curioso malabarismo de cloro e esmalte. Quando saía da piscina, ainda com os dentes amontoados dentro da boca, ficava imóvel por uns instantes a apreciar o seu ordenado e paulatino regresso aos seus lugares, perfeitamente encaixados e plenos. No momento em que despertava tinha aquela imagem clara na minha cabeça, e logo de pronto se esvanecia, regressando de novo, pontualmente, ao longo do dia, excepto enquanto nadava. Não era a rua o problema. Agarrei-me à casa para a escrever. Para que o meu corpo fosse por ela escrito. A escrita mútua do corpo e da casa impôs um afastamento um estranhamento uma desconfiança. Da rua e do seu olhar. Da rua e do meu olhar. Um fascínio. Não era a rua o problema. Tinha um plano, até. Sempre tive. Sempre à mão. À vista. Um inevitável plano traçado com minúcia pelo atravessamento comum da casa e do corpo. Um plano tão quimérico quanto inescapável. Para ser cumprido à risca sabendo-se inexequível. Regressar à rua seria abandonar o corpo, e o abandono do corpo era precisamente o que me agarrava à casa. No final do plano, dobradas as suas arestas, estava a rua, olhando sendo olhada olhando. Percorri a paisagem do texto com um vagar horizontal. Passei de manso pela tranquilidade abstracta dos nomes que eram só palavras que serviam para subtrair o nome às coisas. Palavras de cristal, ofuscantes, a dizer coisas reduzidas a coisas, inominadas. Era já o longo estio do texto, fulgurante terra queimada, coberta por cimento armado. Uma rosa era uma coisa uma mão era uma coisa um grito era uma coisa um líquen era uma coisa uma curva era uma coisa um brilho era uma coisa um silêncio era uma coisa um vidro era uma coisa uma febre era uma coisa um corvo era uma coisa uma faca era uma coisa. Tudo reduzido a tudo. O que diz o texto é o que diz o texto, disse o texto, A conformação das coisas, acrescentou o texto, A morte de tudo em tudo resumida, prosseguiu o texto, É o que quer dizer o texto, finalizou o texto. O som da chave a trancar a porta da rua, os olhos a habituar-se à escuridão da sala, o corpo em arrasto enfaixado no interior da elegância do vestido e dos saltos altos, os lábios mortos a brilhar conservados em plástico, tudo dava a exacta medida da ilusão de qualquer começo. Nada começaria no sofá da sala que me acomodava, costas direitas joelhos unidos, a fazer de conta, porque nada começa nunca. Fechei os olhos. O sono foi descansado, contínuo, no conforto do sofá da sala, casaco de malha pelas costas sapatos rigorosamente dispostos no chão, até que uma tímida luz inaugurasse a renovada falácia do dia a começar. O átrio encolheu assim que consegui distinguir-lhe a cara. A violência do detalhe a alterar a correlação de tudo com tudo. Todo aquele corpo pasmo cobria, espectral, ressonante, a paisagem de pedra. Na sua imobilidade imponente, emergindo da alvenaria como um tumor que cresce em descontrolo, a uma velocidade homeopática, imperceptível, embora imparável, enraizado no mármore nos ossos, no cimento na carne, na tinta arenosa na pele. Os olhos vãos, sem fala, já não retornavam, Vizinha?, como antes, Vizinha?, e ela olhava, desviava ligeiramente os olhos acima, e já nada, agora, Vizinha?, nada. Apagou-se a luz temporizada da escada e eu apressei-me a entrar em casa. Fechei a porta devagar, sem estrondo, e tranquei-a. Fui-me deixando levar por passos mansos rua adiante, indiferente à sorna das tantas moscas que me apoquentavam a pele e a resignação. Era o recomeço solar das coisas. Estar onde devia estar. A carne respirava a conta certa, e morria o quanto a expectativa permitia. Total corpo aberto à escuta pelas palmas dos pés, o tosco do chão crepitando, azuladas veias da destilação do tédio. Avancei de olhos em riste, por ser o que espoleta o fulgor a morder as canelas nos dias de comum acordo. E os pés desentorpecendo, desatando nós. Virá a morte e terá uma fina camada de pó da estrada sobre a pele. Sobre a pele que caminha. Que avança, indiferente às moscas, rua adiante. O eco era seco, súbito fulminante rapace morte. Daí que não se fizessem ouvir as palavras. Ou que a fleuma dos passos as engolisse. Não me dava o chão tanto quanto eu procurava, uma pontual clareira onde fixar os pés. Planei pela vaga cheia, pesado corpo morto à deriva, enrolada a pique, como um grão empurrado pelo sol areal afora até ao limiar do deserto. Eram mornas, as mãos do deserto, o seu hálito adocicado que me acariciava o pescoço, o toque a raspar a carne a acender a cerrar os dentes a esgazear os olhos, os seus dedos húmidos. Trazia o medo arrepiado a tiracolo. E deixava-me avançar. E permanecer. E avançar, largada às línguas de areia, a carne viva inflamada por beijos de sal. E uma gota de sangue a fugir dos lábios, a inundar a boca. Até ao fim do deserto, até não mais olhar para trás, avançar, sem hesitação, incendiada. O corpo sem refúgio, sentado num banco de mármore branco. Adormeci. Despertei. Abri os olhos atrás do ressono do velho, esse sopro frágil com que a morte, fictícia respiração, clareia a imundície dos pulmões para abrir um trilho. Necessita da alvura desse espaço, a morte, e assim se anuncia, Venho vindo com as melhoras da morte, diz a morte, quando diz, quando precisa de se fazer ouvir, Já não levarei em troca senão palavras límpidas silêncios claros ar puro, e o que de mim se esperava era que escutasse a sua marcha. Atravessei lentamente o corredor das traseiras, ainda estremunhada, até à janela semiaberta onde me encostei a fumar um cigarro. Iludir a morte com a elasticidade da noite, pensei. Quando regressei ao quarto, o velho tinha os olhos fechados e já não respirava. Da janela não soprava qualquer brisa. Passei a actualizar o plano no balanço dos domingos de manhã. Vinha e tocava-me com as suas mãos impetuosas, e eu, perdida pela ampliação da sua pele morna, balbuciava o domingo preso aos lábios. Vinha, o plano em frenesi, e saltavam os fonemas, reconfigurando-se, significantes, pela página. Só podia ser o plano o que era, continuar a ser o que fora e o que seria. E ganhava o meu corpo todo o vigor do texto em redisposição, mordidas as sílabas lambidas as curvas, até que falasse o domingo, o imperceptível, o regresso à singeleza da letra. Estendia-me pelo fundo da página, deglutida na transparência da tinta, e morria até ao domingo seguinte. Entre o chá e o livro, eu era apenas um desacerto. Dancei como dançam os sismos, sem saber sequer que dançava, julgando que era só a mão a levar-me pelos abismos tectónicos. A explorar as suas paredes incertas, a planar sobre o seu chão de folhas inviáveis. E a dança parou, mas não eu, a mão que era. O chá fervendo sobre a pele animou um convívio desajeitado entre o que as letras queriam dizer, cada qual com as suas deformidades insolúveis. O amor dos tristes. Eu, dançando. A mais triste de entre as tristes. Bebi o chá. Fechei o livro. E continuei dançando. Seguindo a mão. O passeio respirava lentamente debaixo dos meus passos. Caminhei determinada, de encontro à violência solar, com a solenidade dos dias irrepetíveis. A leveza de quem adivinha o desastre contíguo ao desastre contíguo ao desastre contíguo ao desastre, eis o que estava decidida a não perder.

 

was born during the Cold Winter of 75 in Lisbon, where he still spends most of his time.

Issue #05
1. Um gesto onde se abriga a cinza: esboços para Rui Nunes
2. Do Donbass a Hiroshima: Paisagens Traumáticas, Paisagens de Monstros
3. Rebanho e multiplicação
4. Platitudes 3 (excerto)
5. Can u listen?
6. este cinema desdobrado em ossuário
7. NÍNIVE
8. Tapeçarias
9. “Não é permitida a saída de flores”
10. QUARANTIME LOVE
11. Incipit. Scree. Explicit.
Back To Top