NÍNIVE
Intercontinentais, que reagissem
Aos sobrolhos quando franzem
Retomando o voo sem escalas
Até as perderem a vista e as lágrimas [2] Pássaros imaginários habituados
A desatar os vínculos que nos
Estende o existente, pássaros em
Nós, que debalde afugentamos, ao
Pronunciar o mundo ao contrário [3] O acelerador de partículas agitava
Dois anos da sua vida, enxaguava
Em meia máquina, cada movimento
E sensação expandia-se num tempo à
Parte, livre da espuma e do calcário [4] As plantas ambiciosas o orgulho as
Levará longe e nós corpos de sede
Heliografados e alérgicos confiamos
Os desejos ao deserto carbonado
Citadino, a nossa alma de oxigénio [5](O Norte magnético diferindo do meu
Norte levava-nos à deriva a um navio
Congelado, ouvíamos sons de metano
E scherzos do permafrost, eu mungia
Uma estrela quente, o nosso chá [6] Então contávamos as ideias inúteis
Eram trinta e cinco e o meu gosto
Pelos antorismos salvadores fazia-te
Rir, não eram inúteis, eram ociosas
Eram sábias, nevadas, vítreas e livres [Nenhuma história é a história toda, e contar histórias
não devolverá o dodó retido na alfândega darwiniana
a menos que decretemos fortes narrativas, de cores
titânicas, com que interviessem no passado agentes a pedido
Vamos por esta rua, mais calma desde que o cinema
fechou e ninguém pôde aproveitar o espaço, eu sonhava
fazer dele uma grande superfície para inventos singulares, cujas
patentes deram em nada, e mostrá-los ao mundo, objectos a
funcionar, maquetas, esboços, sonhos captados por aparelhos
que se desligam misteriosamente à nossa aproximação; haveria
espaço para o conciliador pictórico que traduz a discórdia
entre amigos numa pintura com zonas invisíveis; o corrector
em tempo real que analisa as conversas e assinala com luzinhas
vermelhas os deslizes ortoépicos, gramaticais e lógicos; o
extintor de doenças imaginárias que ao mesmo tempo elimina
fómites e toxinas; o gerador de ventos alísios e foehns,
sirocos e borinos, pamperros e mistrais, com que arejar as
salas e secar a roupa; o dispersador de moléculas fatigadoras
para acalmar grupos de crianças ou de pais; o copo de fundo
falso que parece sempre cheio; a mala antigravidade, que se
leva como um balão; o reparador automático da roupa e
calçado preferidos e insubstituíveis; a confeccionadora de
refeições saudáveis à base de ingredientes desaconselhados; o
indutor electromagnético de cólicas, de aplicação judiciosa a
distâncias insuspeitas; o cancelador de memórias próprias ou
alheias, com mecanismo de selecção e intensidade; o adestrador
de falcões (com ave incluída), para defesa pessoal e envio de
correspondência amorosa; o analisador psicoquímico remoto para
revelar ao minuto o grau de empatia dos funcionários de uma
repartição; o kit com soros da verdade, da intenção, do raciocínio
e do arrependimento; o corrector biofísico da má onda hertziana
e psicológica; as pastilhas para saltar refeições e tratar dos dentes
e gengivas; o telefone mental com atendedor e sinal de ocupado;
o detector de constelações e astros para viajantes desnorteados;
o tridimensionalizador de desenhos infantis; o removedor
ultra-sónico de nódoas e dedadas; o inibidor de soluços,
com vários sabores; o ajustador térmico portátil para interiores e
exteriores; o indutor de chuvas com opção de desenho de nuvens
e formação de arco-íris; o preenchedor telepático de formulários;
o completador de poemas mutilados em papel e pedra
(é exemplo pertinente da sua utilidade uma estela assim decifrada
[O dem]ónio a ti pi[sca]
N[o sembl]ante a ofert[a]
[De um]a vida int[eira]
[Por u]ma alma me[ia]
Vês a [inte]ira vida
Que o [anj]o [te] ace[na]
Uma al[ma p]le[n]a
Por [uma v]ida v[azia]
Quer as li[ras s]oem
Quer tr[ombe]tas conv[oquem]
Mudarás de ti?
Mudarás [de ti?]
Por uma nu[vem que pas]se
[E em tu]a cabeça volteie
[Arre]pie e planeie
[Of]ertar-te outra vida
[Conhece]s a l[av]a
Que dentro ru[mor]eja
Escavando a va[la]
Por ti já esp[erada]
Mas não [atrib]uas à va[la]
Esses teus de[sejos]
Nem ar[roubo] de p[ejos]
Furtes ao teu in[ferno]
Ouves tu um a[njo]
Ouves um de[mónio]
[Po]nho-me [à escuta]
E só a [vi]da so[a]
Ou por [bem d]a verdad[e]
[Nã]o é me[lo]dia
[Tri]ste fan[tasia]
[Cont]ém esse rum[or]
[Rub]ra vastid[ão]
[Celest]ial ta[lvez]
[Comp]are, prefi[ra]
[Vo]z de ín[tima lu]z
[Que a vân]dala n[oite]
[Tra]ça ce[ntos de v]ias
[Lágrim]as cálidas, ou fr[ias]
[Rola]m nesse [des]nor[te]);
a máquina de compor e recitar haikus em moto contínuo,
em todas as línguas e com qualquer voz; a bolha isoladora de
som em espaços públicos, para grupos pequenos ou numerosos;
e tantas outras invenções com que facilitar a busca eterna de
tempo, que usaríamos para obstar à ignorância e ao excesso de
saber, se não renunciarmos ao movimento e descermos do
mundo. Mas haveria também inventos electro-hormonais para
o prevenir, uma afastadeira de pensamentos autofágicos, um
bloqueador de construções mentais medíocres, um pulsador lunar
(funcionaria à luz da lua) para sintonizar a poesia com a situação onde
não a vemos. A colecção incluiria um dissipador de boas intenções,
que é um antídoto para o positivismo exagerado que nos afasta dos
abismos – e um contra-antídoto, logo que precisássemos de
voltar a salvar-nos e à Humanidade em redor. (Professor de estudos
lafontainianos, apresentaria o meu drama-lab – as crianças
atentariam na arte sinestésica e nos doces) Não falaremos,
porém, de filmes ou de dinheiro, de um aparelho que delineasse
os andamentos luminosos óptimos de uma sonata cinematográfica,
óptimos digo eu para estabelecer a transposição inesperada
de cada argumento, submetido a um computador que permitisse
definir, no seu tratamento dramático e planificação, as zonas onde
melhor desaplicaríamos este ou aquele registo formal, seria
outro dispositivo, que melhor funcionaria em tandem com um
ciberanalisador para desvendar a solução financeira do projecto;
pois falar disso é pôr termo à aventura]
[7] Do Outono recordarei o carvalho a
Mover sombras ocupado a atirar as
Sementes ao lago, e a busca do olor
Intruso de uma dafne pelo túnel do
Metro, à luz publicitária sobreexposta
Principia ao fazer-te buscar o dicionário
Onde o tens, sentar-te a tarde
Inteira a folheá-lo e isso levar a
Que de seguida, intérrita, interpreses. [9] Vi sair o oryx, nunca te imaginara a
Cuidar destas espécies doentes, uma
Electrolux addisoni ilumina a mesa
De operações onde passas o dia a
Salvar-me, lynx pardinus, como fénix [10] Supraterreno, subcelestial, o som
Metalo-litúrgico da memória vindo
Destilar um dia frio, operário, de
Bandeiras vermelhas bravas aos
Soluços dardejadas dos teus olhos [11] E o meu comboio filtra a dor de me
Afastar, quando nos ausentamos o
Que fica teu em mim: geleia-imagem,
Eflúvio-voz, garganta-atada, os meus
Lábios beliscando o teu nome. [12] Uma silhueta ao longe de pernas a
Terminar numas botas de cordões
Cimeiros desatacados pendentes e
O vulto-logo, a sombra chinesa some
Na rua, transeunte fílmica não captada [13] Outro vulto de chapéu e gabardina,
Gringartsaidiano na Londres ensopada
De miragens dirige-se a nós de chave
Philips na mão e oferece-nos uma flor e
Um kit de poesia automática [14] Lorde Chandos atónito vê a prática
Comum da opinião so unbeweisbar
So lügenhaft so löcherig* e todos menos
Tu forjamos novas calúnias com que
Legislar o real movediço dos outros)
* Tão indemonstrável, tão falsa, tão vácua
[15] Veloz como um sável atrasado queSulca as estradas fluviais largando
A pele e a memória alguém cinde o
Gelo com uma lâmina grossa, raspa
E patina até ao alto frígido onde será [16] Rêverie, daydreaming de bookman
Antiqua, as portas da minha mente,
franqueadas, conduzem à ante-sala
Onde se afadiga eternamente angustiado
Um procrastinador. A adiar-se. [17] Cavaleira, ela, demonstra-o a avidez
Com que consome a dor no esbatido
Mundo galgado lesto, a velocidade
Animal que imprime ao pensamento
E ao corpo e às suas escoriações [18] Um desagravo monstruoso: de calmo
Semblante ultramarino ela fará o que
Tiver de ser, afaga o cabo da besta
E a seta que dispara orbitará na carne
Alheia, devastando visões internas [19] Mas o viajante que deseje interferir
Deve redesenhar o coração e sofrer as
Cores dos animais que todos os anos
Se despedem migratórios e regressarão
Mesmo que não mudemos. [20] O Árctico! Vêm duas mãos boreais
Riscar a terra muda, aquietar a
Fronteira, esculpir a névoa do meu
Hausto enquanto escaldo a língua na
Sopa por temer que arrefeça [21] Os gestos precipitados que levam ao
Abismo, os intemperados que vão
Dar ao desconhecido, os delirantes que
Redundam no acordar, os cautelosos
Que não chegam a partir. Eppur… [22] Sim, tenho macaquinhos no sótão, é
Abordá-los e pedir a opinião. Embora
Nas entrevistas se portem todos como
Secretários papais e até proponham
Passar-vos cartas de recomendação [23] Uma arqueologia de videocassetes
Vem denunciar as camadas do não
Visto, e entardecido sigo um filme
De Bolognini curioso com uma fruta
Siciliana de que não sei o nome [24] Alguém sonda a hora passada,
As suas entranhas, quer o que segure
Ressalte, realce, vinque, sublinhe
E saliente um rosto que passou e o
Seu reflexo não retido. Alguém sonda [25] Distribuo azuis, assim respondo nos
Inquéritos se me pedem ocupação.
E os meus rendimentos anuais de
Tingir os semelhantes de azul, serão
Colectáveis ou — não sabe/não descose [26] Os pombos da igreja, enfermos nos
Beirais, incinerados pelo riso de um
Dragão. São Jorge quis enfim saber a
Quem não querem que combata e
Aguarda. Bombeiros desesperam. [27] O subliminar de tudo carcome as
Ideias que podíamos ter tido, como
Fugir dos bolcheviques viajando para
Leste, até às Aleutas, agora é tarde
Não pensámos bem [28] E todavia filmar é-nos permitido
Descolar dos dias incertos alguns
Exemplos de acerto teimoso, do
Ritmo enlevado de algo que voa, da
Calma harmonia de algo que plana [29] Cai a noite sobre o nosso tempo, o
De remar ainda sem seguro nem nome
De utilizador nem senha e a bagagem
Para ir a nenhum lado. Eu girei a
Garrafa, apontou Nínive, e agora?
Filmmaker, poet, translator.