Herbário
Pára o tempo. Colhida a flor, deposito-a
com suavidade num caderno.
Aí abandona a humidade,
o seu humor sucoso, erótico,
a impressão sensível da sua forma
cuidadosamente pressionada.
Observo as ondas criadas
pelo derrame floral, as incidências
da luz e as sombras desdobradas no papel.
Nesses dias não sou competente nem prática.
Não catalogo, não identifico, não organizo.
Nesses dias, junto pedaços incandescentes
da flora convulsa e guardo-os para me lembrar
: uma orquídea que floresceu duas vezes no último ano
um feto que quase secou mas resplandece agora
verdemente perto da janela
os veios das folhas, aquele setembro amarelo torrado
umas poucas tulipas compradas num dia triste
para adornar essa tristeza muito funda
um líquen achado numa oliveira que me fez pensar
num ouriço que me fez pensar nos ardores das urtigas
uma camélia que veio do norte do norte do norte
crisântemos
e pétalas de rosa decaídas como um antigo amor.
Dedicar fervorosa paixão
a páginas de lírios, sementes, verbenas.
Criar uma contextura orgânica,
ver a mancha da constituição interna
da cabeça de planta,
melhor, dos seus órgãos reprodutores
apresentados no topo, despudorados.
Como mulheres exibindo a cálida púbis,
exalando os odores de um dentro.
Um colo, uma vasilha cheia de linfas substanciais,
e o arco das coxas, um convite.
Roseiras rodadas no correr dos séculos
ou aglomerados de narcisos junto das águas,
mulheres curvadas de troncos carnosos, flexíveis,
agitados ao sabor dos ventos.
Ostentação desse caule por onde passou o térreo suco
subindo em direcção ao sol
: é pela evidência desse vigor
que aprendo o que pode uma alma.
Ainda na hora do declínio exala triunfante
o facto indesmentível de ter brotado
– de ter oferecido a todos a sua verdade indomável.
O estigma da vegetação prova que as coisas se propagam
e excedem as linhas estritas da figura.
Regresso sempre às páginas de flores loucas, as esbanjadoras de dons.
Pressinto alegria no silêncio essencial dos filamentos esmaecidos.
is currently a researcher at the Institute of Comparative Literature Margarida Losa. She has published two poetry books: Cisco (2014, Mariposa Azual) e Animais de Sangue Frio (2017, Língua Morta). She has also published in several literary magazines.