este cinema desdobrado em ossuário
Mar Becker (poesia)
Carolina Krieger (imagem)
I
por vezes minhas unhas das mãos surgem em
sonho absurdamente
longas
tornam-se inoxidáveis ganchos onde eu
poderia pendurar teu
corpo despedaçado de amar
e tu me verias caminhando
carregando esse peso do mundo
levando-o de lá para cá
como um enternecido
açougue
II
o que instintivamente nos impele a sussurrar no amor parece estar nisto: entre as formas da
pronúncia, é o sopro ─ essa matéria delicada ─ a que mantém o idioma o mais próximo possível do
fio dos caninos
III
lince, lume
d’água, antúrio entre dois
ventos curvos ─
[eis onde me dói a mulher, em que espessura]
IV
ser toda curtume e canção
V
volto-me de repente aos sabonetinhos aqueles que ficam nas gavetas dos quartos, nas cômodas,
envolvidos em organza ou voal. pequenos ossos, rótulas ─ de ninguém. não dizem de um corpo que
se perdeu de fato, mas da miragem da perda. vagueia neles algo de ameninado, há um luar de
infância sobre esse cinema desdobrado em ossuário. curioso como inventamos objetos assim. em
toda casa há pertences (ou digamos ruínas de pertences) que nos abrem a possibilidade de compor
saudades descarnadas, e talvez esteja aí o primeiro aprendizado do amor. raduan diz, “o quarto é
inviolável”, construímos com ele uma intimidade sem cura
VI
o amor não seria amor em mim se não me tocasse a este gemer de papoulas torcidas pela primeira
geada negra
VII
tudo é véspera no sussurro ─ esse território suspenso na indecisão
entre dizer e tocar
VIII
penso no sussurrar como um lugar de foz da língua, ali onde se confundem a invenção da docilidade
e a do medo. há esse nascimento ambíguo, algo como o que se poderia esboçar na ideia de uma
divisa de tráfico dos órgãos do degelo
sussurram as mães aos recém-nascidos, sussurram os cúmplices e os que caminham na casa à hora
descalvada, ligeiramente antes da manhã. sussurramos aos doentes e aos amores
IX
esta canção escoriada, dela se alcançam lábios sonhando à tutela de um pássaro entre facas
X
amo-te a esta hora fragilíssima do dia ─
na divisa entre a noite e a manhã
quando algo do escuro ainda se alonga na luz
quando cada palavra dita ainda guarda
toda a língua
I
não são teus olhos que amo nos teus olhos
nem tuas mãos nas tuas mãos
nem tua voz na tua voz
o que amo nos teus olhos é esse instante de água tocada
e o que amo nas tuas mãos é que as perco
e as procuro
não amo a palavra que dizes em cada palavra
amo o rastro ─
teu vocabulário de ave em retiro
a canção desfeita
não são teus olhos que amo nos teus olhos
é tua noite
II
poderia dizer que amo teu nome à boca
poderia falar das vezes em que chega a manhã
e eu o procuro
e faço dele a primeira palavra tocada
mas não. o que digo é que no amor tudo nasce frágil
que há manhãs em que me vejo à beira do teu nome
e não sou capaz de feri-lo
com a voz
III
ainda que o amor devore os que amam. ainda que pense joias extraviadas em ilhargas, em coxas.
ainda que o amor seja ele mesmo uma legião de combalidos que se levantam e se olham frente à
frente, divididos em igual medida, em dois rostos. ainda que ninguém possa amar sem suster em si
os que amaram ontem e os que amarão amanhã ─ porque se ama em todos os tempos, não seria
amor se fosse num só. ainda que ao luar se vá cumprindo a abertura dos ossuários. ainda que
pendam na balança de um beijo os vivos e os mortos que guardamos dentro. há tanto que pesa no
amor, e ainda assim ─ como pode, como pode que amar
não pese mais que um sopro?
vem a estação de estranhas joias:
coxas langorosas, sexo agrinaldado com linho-de-raposa
e como me afeiçoo a esta erótica tão própria, que surge como que num enxame se acercando de
algumas imagens. digamos as meias calças recolhidas frias e então mal-guardadas, elas quando
caindo das gavetas, em quartos onde num deslabiar-se sem fim trafegam as mulheres ─
.
palavras que surgem carregadas de notícias; aqui converge sem rosto um clamor
.
os cachorros anunciam que o inverno chegou. do que lembro, é a primeira vez neste ano que deitam
enrodilhados, pesando ao coração
.
pedrinhas achadas na rua, sutiã de duas taças arranjadas uma dentro da outra, para caber na cômoda
num único seio mendigo sugerido, barras de percal, blusa, cama
[molhar a ponta de uma agulha na chuva]
.
vem a estação cruel, em cruéis objetos de amar
[a casa]
I
a casa. as janelas, as janelas molhadas. quem tocá-las regressará com um grão de uivo nas pontas
dos dedos. isso é tudo aqui, esse saber a umidade, do que se alcança uma curva ─ uma alça de
xícara impensada, um veio de variz
num tornozelo
.
acordo e tomo lugar entre os afazeres do dia, com essas mulheres que vêm e vão usando calcinhas
vagamente apodrecidas, quase sempre
recolhidas antes de secarem inteiro, os fundilhos de pano pesando
(elas terão cândida amanhã)
.
que insalubre, o amor; como dói essa asa de desejo quando se ergue súbita e
desenha entre os que moram o rosto do amor
II
penso lábios perfilados ─
penso-os, e surgem fulgurando os objetos da vilania (o pentinho de tirar piolhos sobre a cômoda, e o
quarto cheirando a escabin e suor de sono)
III
dois cachos de uva niágara ─ já comidos, só a galharia. os raminhos, um monte, e na ponta de cada
um fiapo repuxado, babando, babando. dessa carcaça (que cabe na minha mão) intuo um esboço (de
brinquedo) de colo e quadril. é ainda algo-menina o que em mim produz imagens, imagina (e
imagina deformando, aleijando seus brinquedos velhos). são ainda os olhos da infância que
costeiam o mundo por miniaturas e descobrem aqui um cacho-ventre pontilhado de miasmas,
florindo-babando a claro. dou risada, rio ─
meus guardados são monstros de bolso. na casa há outra outra casa morando, e essa vem por mãos
pequenas
I
ainda sem dentes, o filho devora a mãe
ela o carrega no colo, caminhando pelo quarto
sinuosa como o curso de um rio
.
o filho dorme e traz um cordão pendurado na barriga
(e a casa ela mesma vem e vai, e é como se respirasse)
.
o filho é um cacho arrancado
à boca da mãe. ambos se suspendem num
pensamento de sangue, recolhido em si
como um rio
o silêncio entre dois corpos desenha uma correnteza
.
a mãe é uma fera que canta
e enquanto canta esbarra a língua nos caninos
II
enquanto o sono dorme longo nas meninas
são as mães que as vigiam e se curvam nas camas
são elas que lhes alagam o sexo
com lágrimas muito salgadas
lavam-lhes a primeira ramagem de pelos
como harpias, as mães querem sempre carregar para o mar
são luares, são luas imensas erguendo cheias
sobre corpos tão pequenos
.
mais tarde, quando então crescem as meninas
e se apaixonam
nesse tempo cada rosto é reencontro:
cada beijo descobre dentro de
suas bocas as antigas bocas de criança
cada sopro arde-lhes nos lábios
outros lábios, intocados ainda
ainda afogados
nas águas
do primeiro amor
mas caim seguiu
e a dor de sua bastardia se fez ouvir por muitas noites. ergueu-se no uivo dos cães, no descuido dos
berços, no desfolhar da belladonna
o sussurro de caim se levantou por si, inaudito
e tomou rumo às cinco da manhã, essa hora que alcança a chama das velas e cega os olhos do
desavisado um pouco antes da
proximidade do ladrão
.
dos homens que o acompanharam na fundação da nova cidade, sabe-se que não olhavam jamais
para o céu. olhavam para suas mulheres, aquelas que levavam consigo
(depois de se deitarem com elas, ao final da tarde)
as joias ainda oxidando em volta dos umbigos vazios
.
caim seguiu
e em torno dele uma pequena população cresceu. porque eram quietos, porque não estavam
marcados com aquele sinal de sonho que impele as gentes a comungarem umas com as outras, a
desejar um futuro
por isso seu tempo era inteiro dedicado a reparar nas poucas coisas em torno. assim desenvolveram
uma atenção voltada aos desdéns:
as mais sutis gradações no desbotamento das cores conforme o dia vai nublando, por exemplo; a
fala dos de lábio leporino
a orgia de abelhas mirins em volta das camélias. tornaram-se abrigo para toda secretude, eles
.
como se de antemão se preparassem, como se, por saberem que não lhes estava reservada vida
eterna, quisessem guardar tudo de memória. era preciso ter o que lembrar caso as pálpebras viessem
a se abrir de súbito, caso os corpos permanecessem num estado de limbo sob a terra
anoitecidos e acesos, no limiar
era preciso ter imagens para a queima, uma eternidade toda horizontal fechada em si, inacessível
aos demais, enterrada viva assim ─
com olhos brancos bem abertos
I
num dia, as janelas se erguem ─ descomunais. parecem imensas quando amanhecem embaçadas
.
o fogo se extinguiu há tempo, e o que resiste agora é esta paixão sem pele
.
passo fundo, vila annes:
bem cedo da manhã, éramos nós irmãs e a mãe circulando pela casa; a hora alta, e as feições
surgiam avulsas, ainda enormes de sono
.
até o ponto de adoecê-las: assim olhar as coisas
.
morar é questão de se tornar uma mulher cega entre outras mulheres cegas, e com elas ir tateando o
ar
II
entre o término de agosto e parte de setembro vivíamos o período úmido. eram dias de chuva
finíssima, que se alongavam numa semana, às vezes duas, até quatro, continuamente. íamos sendo
mudadas pela exposição a essa água em forma de garoa, e a mansidão desse período, nós a partir de
uma altura começávamos a estranhá-la. lá pelo décimo dia, a casa já havia entorpecido, já não a
reconhecíamos mais
.
(no limite, passávamos a sentir medo de que a primavera não fosse vingar a tempo. antes disso, a
água avançaria, desceria às raízes, apodreceria boa parte dos bulbos. se chegasse a irromper, e
chegaria, seria outra primavera, erguida magra, aleijada)
III
também nesses dias de garoa a roupa pra lavar se acumulava. tínhamos por hábito esperar que
fossem quando muito duas semanas, um erro. (a água é traíra, e a água que se afeiçoa à lentidão
mais ainda). quase todo ano a umidade se estendia ao insuportável, e o cesto começava a
transbordar no banheiro e nos víamos de uma hora pra outra sem ter o que vestir de limpo, o
guarda-roupa vazio
aí nascia entre nós uma rotina de reuso. era tão asquerosa quanto arrogante, rude ─ as duas coisas
juntas. consistia em deixar as peças usadas respirando à noite, penduradas pelo quarto, e depois
vesti-las novamente na manhã seguinte. isso com todas elas, inclusive as calcinhas. dormíamos sem
nada, e quando íamos pôr outra vez as calcinhas o muco já havia ressecado nos fundilhos ─
era uma crosta então, árida crosta de meninas
IV
(na casa, vivem as tais mulheres paradas, que andam paradas; nesse mundo, andar é só outra
performance da imobilidade)
V
digo que aquela era nossa porção do dilúvio ─ mesmo que parecesse inofensiva, só uma garoa.
quem disse que o dilúvio precisa fazer alarde? acho a propósito que esses aquietados perigam mais
fundo, porque tendem a se alongar e se infiltram, prometem a alegria da incivilidade, vêm
chancelados pela ideia de se poder faltar a dias seguidos de aula, riso e cheiro de sopa, riso e janelas
embaçadas, estar inoticiável ─
“ninguém nos alcançará”: a correspondência, posta por baixo da porta; o ímã da liquigás, grudado
na maçaneta. “ninguém avançará porta adentro, somos inalcançáveis”
VI
no fim, esse sentimento diluvial era também o que nos conduzia a lavar roupa, porque não dava pra
ficar à espera, “não terminará logo”. ia então toda a roupa suja acumulada num só dia: bater quatro
maquinadas, da manhã à noite, e estender distribuindo uma boa quantidade de peças pela própria
casa, já que não havia varal o suficiente
.
que visão aquela, que tínhamos da sala no dia depois. as calças de moletinho penduradas nas quinas
das estantes. as blusas nos encostos das cadeiras, em torno da mesa de jantar (onde aliás não se janta
nunca, não tem essa serventia em casa de gente como era a nossa). os sutiãs e as calcinhas pendendo
dos puxadores das janelas, das maçanetas das portas, caindo-imóveis-dos braços-do-sofá
havia todo um alongar-se nos sutiãs quando os víamos na sala dispostos assim; os meus e os de
minha irmã especialmente, porque nem bojo tinham
que ímpeto de esgarçamento se abatia na casa; descobri-la nesses animais compridos
VII
até que tudo secasse, convivíamos com essas peças, caminhávamos no meio delas
com a passagem dos dias se tornavam figuras pausadas de tecido, e nisso cruzavam em mim com as
visões da edícula, os guardados de uma antiga loja de confecções da mãe
eu chegava a ir até lá outra vez, via as manequins, sem uso. nunca mudavam em nada no resto do
ano, mas em setembro surgiam aos meus olhos sugerindo que
talvez já tivessem sido outra coisa, gente como nós, mulheres. poderiam ter sido mulheres de carne
e osso, vivas, numa casa viva igual à nossa
quem sabe a edícula já tivesse sido ela mesma uma moradia e agora era isto
lugar de presságio, promessa que viria a se cumprir dentro de pouco tempo, que narrava o que
seríamos nós. como as manequins, nos converteríamos em silhuetas paradas no meio do caminho,
como elas teríamos as pétalas lassas em cada olho
nossos dedos, dedos acrílicos detidos no ar
VIII
a essa luz, cultivei desde nova o amor
.
uma canção derruída: essa é toda a notícia que há do fogo
.
se adoeciam as meninas, era tempo de lhes pôr paninhos embebidos com álcool nas axilas. na vila
annes, baixava-se assim a febre dos corpos mais pequenos da casa
.
o que arde dentro da garoa, o sal como conjuro. a cegueira, as mãos
.
num dia as janelas se erguem, tudo é delírio
IX
na cozinha, éramos nós duas irmãs à volta
olhávamos a mãe ao fogão, o rosto perdendo-se na névoa que subia da fervura
.
ralo como água de arroz
o leite das mulheres
para a fome dos homens
was born in Passo Fundo (Rio Grande do Sul) and lives in São Paulo (São Paulo). She graduated in Philosophy, specializing in Metaphysics and Epistemology. In 2020, she published "A mulher submersa" (Urutau, 2020), a book that won Prêmio Minuano and was finalist for Prémio Jabuti (poetry category). Two years later, she published "Sal" (Assírio & Alvim - Brasil, 2022). In Portugal, her latest publication is "Canção derruída" (Assírio & Alvim, 2023).
lives and works in Camboriú, Santa Catarina. She's a visual artist and self-taught photographer who works with photography, appropriated images and manual collage. She participated in several exhibitions and festivals. Between 2013 and 2021, she won the Prémio Brasil Fotografia and Prémio Pierre Verger de Fotografia. In 2022, she was nominated for Prêmio Pipa.