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Agon

 

 

O roubo é o acto sagrado

Num caminho retorcido para a expressão

 

 

 

 

De forma arbitrária se criaram sensações, sentimentos, emoções e noções chave para qualquer fechadura, perante os quais toda a gente acredita que se compreende e pensa a mesma coisa ao serem pronunciadas as palavras amor, honra, liberdade, verdade, quando afinal nada existe como as noções de amor, honra, liberdade ou verdade.

 

 

 

 

Toda a experiência é decididamente pessoal

e a experiência de um outro não pode, fora dele, servir seja a quem for, sob pena de criar esses empoeiramentos sórdidos de alter-ego que formam todas as sociedades vivas e onde todos os homens são irmãos, de facto, porque bastante cobardes, bastante pouco orgulhosos para cada um deles se querer saído de outra coisa que não a mesma e idêntica cona,

de uma similar conaça,

da mesma insubstituível e desesperante conaria,

devassada bem depressa por toda a gente, uma vez que todos são de nascença forçados a pensar o mesmo sobre o maior número de pontos.

 

 

 

 

Para além de toda a espécie de gostos que me conheço, de afinidades que sinto, de seduções que me assaltam, de acontecimentos que me acontecem e só acontecem a mim, de muitos movimentos que me vejo executar, de emoções que sou o único a suportar, esforço-me, em relação aos outros homens, por saber em que consiste, ou em que se firma, a minha diferença. Não será na medida exacta em que consiga tomar consciência desta diferença que hei-de descobrir o que vim fazer a este mundo e qual a mensagem única de que sou portador, ao ponto de só a minha cabeça responder pelo seu destino?

 

 

 

 

Toda a minha obra só foi construída, e só poderia sê-lo, sobre este nada,

sobre esta carnificina, esta refrega de fogueiras apagadas, de gritos extintos e matanças, nada se faz,

nada se diz mas sofremos, desesperamos e batemo-nos, sim, julgo que realmente nos batemos. – Mas o combate será apreciado, julgado, justificado?

 

 

 

 

Um homem caminha na estrada, rouba versos,

 

tubos catódicos, explosões solares lambem-lhe

o rosto, mas está irreconhecível, é um padrão

 

de lâminas de treva sobrepostas, e um círio

apaga-se, e uma luz interrompe-se

 

 

 

 

[…]

mas o cadinho de fogo e carne verdadeira onde,

a repisar de osso, membros e sílabas,

se refazem anatomicamente os corpos

e, sob forma física e ao natural, se apresenta

o acto mítico de fazer um corpo.

 

 

 

Nada temos a temer.

Exceto as palavras.

 

 

 

 

A linguagem é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras.

——

projectei-me no outro com uma força tal que, com a sua falta, já não posso deter-me, recuperar-me: estou perdido para sempre.

 

 

 

Morri agora mesmo. O meu corpo

pendula de uma corda, estranhamente vestido.

 

 

 

O corpo só se revela quando deixa de ser sustentado pelos ossos, quando a carne cessa de cobrir os ossos, quando essas duas instâncias existem uma para a outra, mas cada uma do seu lado, os ossos como estrutura material do corpo, a carne como material corporal da Figura.

——

“Não há dúvida de que somos carniça, somos carcaças em potência. Se vou a um talho, acho sempre surpreendente não estar ali eu em vez do animal.”

 

 

 

 

Pensei que não devia voltar a falar

mas agora sei que há qualquer coisa mais negra que o desejo

 

 

 

 

 

[roubado de]

Artaud, Antonin (2018), “Carta a Peter Watson”, in Eu, Antonin Artaud, Lisboa, Sistema Solar [1946].

— (2018), “Carta a André Breton”, in Eu, Antonin Artaud, Lisboa, Sistema Solar [1947].

— (2018), “O Teatro e a Ciência”, in Eu, Antonin Artaud, Lisboa, Sistema Solar [1947].

Barthes, Roland (2014), Fragmentos de um Discurso Amoroso, Lisboa, Edições 70 [1977].

Breton, André (2019), Nadja, Lisboa, Antígona [1928].

Deleuze, Gilles (2011), Francis Bacon. Lógica da Sensação, Lisboa, Orfeu Negro [1981].

Fonseca, Rubem (2010), O Caso Morel, Rio de Janeiro, Agir [1973].

Kane, Sarah (2020), 4.48 Psychosis, Londres, Bloomsbury [2000].

Pasolini, Pier Paolo (2006), Orgia, Lisboa, Cotovia [1966].

Quintais, Luís (2014), O Vidro, Porto, Assírio & Alvim.

 

 

has a PhD in Literary, Cultural and Interartistic Studies at the Faculty of Arts and Humanities of the University of Porto, with a thesis concerning the work of Fernando Lemos, Rui Nunes, Manuel Gusmão e Luís Quintais. He is a researcher at the Institute for Comparative Literature Margarida Losa (Porto) and one of the editors of SKHEMA - Interarts Magazine.

completed a BA at Escola Superior de Teatro e Cinema and a MA in Acting at Guildford School of Acting. Since 2012 she has worked as an actress and done some co-creations in theatre and cinema. Recently she is preparing her first theatre show, based on 4.48 Psychosis by Sarah Kane.

Issue #03
1. Epigrama
2. Agon
3. Umbigo
4. Sombras
5. Herbário
6. Reading and Call for Work: Colors for Baby
7. Mariana
8. asas
9. [uma estética onde a sujidade, a destruição e o caos estão muito presentes]
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