. do escuro : Madonna dei palafrenieri .
. entrou . não a viu .
primeiro Baco ,
espalmado entre vidro e óleo , no fundo negro escuro brilhante , levemente inebriado , sorria , logo à entrada da sala na parede à esquerda , muito acima do seu metro e cinquenta e seis de altura , nem grande nem pequena , a pintura evidenciava o tom pálido claro esverdeado doente , da pele jovem cor de carne amarelecida .
. via mal , somente o encarniçado salmão a atraía .
. desiludida , pensou na sala onde a pintura que a levara à Villa Borghese poderia estar .
. fechou os olhos . largou Baco .
. virou-se , numa rotação de noventa graus , a libertar-se da imagem dionisíaca , com os olhos à deriva, confrontou-se com ela na última parede à direita junto à aresta .
. quieta tranquila silenciosa .
. portentosa iluminada , escarlate , a Madonna [virgem , mãe , filha], convocou-a .
. aproximou-se .
olhos bem abertos , a vibrar lentamente , avançou , sentiu-lhe o cheiro , tombou a cabeça para trás , fitou-a .
. grande alta larga avassaladora , a pintura escura , castanha negra matizada de óleo quente , avassaladora , projectava para o exterior , sugava para o interior .
. lá dentro, a explodir de desejo na escuridão , esguia , retida , enquadrada ,
Madonna olhava-a de cima para baixo ,
devolveu-lhe o olhar de baixo para cima ,
agarrada, presa ao espaço , frente a frente ,
viu a luz a espraiar , a irradiar , a aquecer , a palpitar ,
sentiu um movimento na espinha , a barriga a contrair , o coração a dilatar ,
a pele a arrepiar , as lágrimas a jorrarem , as cavidades oculares a explodirem,
a pele a aquecer , a falta de ar a chegar , nariz a secar , garganta a encher .
. ferve de amor de desejo .
. iluminada .
. caída tombada , deixou-se ficar , nem sentada nem deitada , num desalinho enrolado ,
como a serpente , ainda viva , contorcida , na parte inferior horizontal da pintura .
. sentia o peso nos olhos , nos ouvidos , no esófago , no externo , no ventre , nas ancas ,
a cabeça a explodir .
. ergueu-se ligeiramente .
. Madonna continuava a observá-la de olhos semicerrados , doces lacrimosos .
. pressentia-a .
postura inclinada , colo desnudado , seios escondidos roliços , cândidos ,
cobertos , acolhidos , rodeados pelo véu transparente rendado , circunscritos ,
corpete escarlate aveludado apertado aguça a luz amarela ocre esverdeada .
. encarnação . de . em . no . fervor .
na mais serena apetecível tranquilidade desejável ,
vestido comprido rodado encarnado escarlate sanguíneo , da cintura para baixo ,
o branco atenua , o rosa alimenta , o encarnado lampeja , a transparência penetra ,
o escuro castanho negro potencia .
. tocou-lhe o peito .
. percorreu-lhe o corpo .
. a carne pintada , viva , temperatura em expansão .
. sentiu as lágrimas quentes , sentiu um movimento na espinha , sentiu a barriga a contrair , sentiu o coração a dilatar , sentiu a pele arrepiada , uma emoção fortemente duradoura invadiu-a , estremeceu , arrebatou-se , ficou a olhar , parada , braços caídos , apazigou-se .
. boca contornada , cabelos levesoltos castanhos claros , mãos firmes delicadas .
. alongou , inspirou , expirou , pouco a pouco , sugada pela luz de Caravaggio ,
invadida pelo lusco fusco na sala , sentiu-se transparente entre duas sombras suspensas ,
uma leve triste alegria na fusão entre dentro e fora .
. o desenho das linhas pregueadas sulcadas em profundidade .
. tempo , estação , compasso , idade .
. rosto benévolo , pescoço mapeado , mãos cruzadas por baixo do ventre saliente ,
trajada de cinzento , desbotada , desaparecida , Santa Ana testemunha na obscuridade ,
rasto : Madonna . filha . Maria . Santa Ana . Mãe .
. a serpente continuou enrolada em si , debaixo dos pés de Madonna , debaixo dos pés de Cristo de menino Jesus de deliciosa criança .
. levantou-se , sentiu sede , foi-se embora , profundo silêncio .
. percebeu :
Baco vigoroso jovem musculado , peito nu , a descoberto ,
bochechas inflamadas , rubor das uvas , das parras , do vinho , lábios carnudos salmão ,
espiava-a através das suas pupilas escuras sedutoras .
. rectificou : amarelo pálido laranja claro com sinais rosa púrpura .
. regressou , não sabia o que fazer .
fitou-a mais uma vez , olhar fugaz dentro , de relance , perto , longe ,
roubou-lhe a imagem ,
no jardim , expandida , Madonna [virgem , mãe , filha] voou , emaranhou-se ,
enredou-se , enrolou-se , enroscou-se , esfumou-se ,
. no . com . entre . azul salmão rosa . verde claro escuro amarelo ocre laranja .
. do entardecer .
é doutorada em Arte Contemporânea pela Universidade de Coimbra. Mestre em Estética pela Universidade Nova de Lisboa. Formada em Artes Plásticas e Desenho pelo Ar.Co. A sua investigação filosófica, bem como a sua prática enquanto artista, contempla a relação entre fazer e pensar, em directo diálogo com o desenho.