caminhar desenhando o desejo, desenhar desejando o caminho, desejar o caminho desenhando-o,
caminhar desenhando o desejo,
desenhar desejando o caminho,
desejar o caminho desenhando-o,[1]
Em meados dos anos 2000 a mão que desenha escreve a palavra designava um conjunto de
trabalhos e mais tarde foi o título de duas exposições. É evidentemente uma afirmação
tautológica, a mão que desenha uma qualquer forma, desenha, com a mesma destreza, as
letras e palavras. Declino outras possibilidades, a mão que se adestra no desenho figurativo
delineia uma narrativa, seja ela percetível e sequencial, ou não. A expressividade e a
qualidade da linha caracterizam a caligrafia, são uma forma de assinatura e uma escrita de
si, manifestam a volatilidade dos humores, a emoção. Mas entre o tanto que acontece, por
assim dizer, entre a mão e o desenho essa expressividade é vibrátil, respira. É como se a
mão fosse um sismógrafo que regista o corpo e as suas emoções.
Há vários momentos no desenhar e no desenho-escrita, que geralmente começa com
inquietação e escuta interior. Escuso-me a enumerar etapas, até porque cada série tem as
suas peculiaridades, mas há outro momento-decisor que é o do distanciamento físico (vai
para a parede) e emocional (afinal, será isto um interessante?). Um olhar crítico pousa sobre
o desenho, e é na compreensão da emoção ao elaborar um pensamento sobre o que está
“ali” que se clarifica se “aquilo” é trabalho e que trabalho é. Em alguns casos trata-se apenas
de uma imagem (muito) íntima, uma mera exteriorização de questões pessoais e, portanto,
ou é refeita – para conscientemente ser trabalho-, ou é posta de lado. O rasgar, essa
violência, é um gesto catártico, tal como o deitar para o lixo. Desfaço-me do que não correu
bem para (me) dar espaço ao que está por vir. É muito difícil apontar de forma concreta por
que é que o desenho não correu bem, ou as razões pelas quais não o guardo. FB propõe que
eu me canso e a folha se cansa, cansamo-nos uma da outra, e que há um esgotamento de
possibilidades. Essa explicação animista serve-me na perfeição, por sublinhar essa ideia de
espelhamento entre eu e o suporte sobre o qual me debruço enquanto desenho.
(eu me debruço enquanto desenho, ah! esta frase poderia dar origem a um novo texto)
escrever como caminhar[2], não emendo, não apago e, por assim dizer, retomo o caminho a
partir de outro lugar. Poderia dizer que cada folha virgem é um palimpsesto, no sentido em
que serve de suporte ao continuar do mesmo desenho-escrita.
Há quem aluda criticamente ao meu pendor para a descrição visto que o exercício da
descrição é a estratégia que adopto comummente quando falo do meu trabalho, mas não se
trata de uma forma de preguiça e muito menos de camuflagem de referências. Optar pela
descrição mantem-me mais perto do que acontece no atelier, é uma forma de discurso que
me é mais natural. E cuida da discrição, do que é da ordem da intimidade, de uma vasta gama
de emoções ou historietas autobiográficas que pouco ou nenhum valor acrescentam ao
trabalho. A descrição dos processos, do uso de determinados materiais, etc. permite um tipo
de apreciação mais livre, sem recair em justificações externas, sem recorrer a muletas que
sustentem a erudição informada da obra. Obriga a centrar-me no presente face ao que existe
perante mim, simplesmente.
Desenho é, para mim, desígnio, é intenção e desejo de compreender, a mim e ao que me
rodeia. Desenhar como quem fixa uma ténue reminiscência tornada imagem, aquilo que
dificilmente se nomeia, dando a ver (a mim e a outros) o que antes apenas intuía poder
existir. Desenhar é verter sobre uma superfície, por assim dizer, a vontade de ver e dar a
ver; gesto (auto)hipnótico, estruturação interior, é, também, dar uma forma concreta a
obsessões.
escrever como caminhar, desenhar é escrever como quem deambula e avança por entre
hesitações e tantas experiências falhadas, cuidando do que se conhece, pressentindo o
muito que há por desbravar. A ideia de progressão é-me estranha por implicar uma
qualquer ideia relacionada com melhoria, em detrimento do que já foi feito. É claro que há
um acumular de experiência, um treino da mão, mas o trabalho faz-se e existe em função do
contexto presente, e devolve o que me entusiasma e intriga (influxo, aqui, agora). Em vez de
seguir um trilho previamente esboçado, trata-se de seguir -para a frente, para os lados, em
zig-zag, olhando para cima, para baixo, em frente-, tateando a morfologia do terreno e à
escuta do eco das passadas. Nem eu nem o trabalho progridem.
O trabalho chama movimento, uma aprendizagem feita com diferentes cadências e ritmos,
é desejo. É como uma longa conversa comigo própria, entre o que as mãos fazem e o que a
cabeça pensa, e o que o coração sente, é uma mineração do que o exterior traz ou dá. É um
fluxo, sem medida ou compasso certos. Poderia apropriar-me das palavras do Richard Serra
quando diz que o desenho (ou o desenhar) é um verbo. Mas o termo vernáculo mais justo é
tesão.
desejo o desenho e desenho o desejo[3], com intensidade e em tensão, o prazer de ver e fazer
aparecer “qualquer coisa” que até há segundos não existia. Por vezes um ínfimo movimento
(interior) gera um tumulto, agitando ombro-braço-mão, alterando a respiração e as ideias,
o ser. E esse alvoroço pode subsistir durante anos, sustentando diferentes experiências,
múltiplas variações em séries trabalho diversas.
fazer surgir linha e nós, ser voragem sílaba a sílaba, ver passar de linha a cicatriz[4],
Dar a ler as palavras ou dar a ver o desenho em torno das palavras ?
Contornar, circundar o que se quer decifrar, andando em sua volta.
Delinear desenho-escrita, imagem-palavra, e fazê-lo de modo legível recorrendo a novelos,
tessituras ou fibras, músculos ou pedaços de órgãos, cuidadosamente ordenados em torno
de sinuosos espaços vazios. Por vezes parecem-me nós.
Nós, no sentido de o desenho-escrita nascer de uma profusão de linhas que vou dobando
conforme faço o desenho, conforme as linhas se derramam sobre papel. Nós, por sentir, por
vezes, que há uma projecção directa entre as palavras escolhidas e o desenho em execução,
são indissociáveis, tautologia. São um enigma, quem aparece primeiro, o ovo ou a
galinha? Nebulosos nós de pensamentos que se organizam no preciso momento em que a
mão desenha e se movimenta sobre a superfície da folha.
colecionar palavras subterrâneas[5], aquelas que nada explicam ou clarificam.
A pluralidade de significados e conotações de algumas palavras interessa-me. Como por
exemplo oração[6], que tanto é sinónimo de frase (fala), como de prece ou súplica.
tatuar corpo e caminho[7], ao longo dos anos o trabalho torna-se outro corpo, que espelha e
que, de uma estranha forma, me (co)responde. Essas imagens, mesmo que já não existam
ou pertençam imprimem-se em mim. E esse corpo, conforme o contexto, conforme vai sendo
exposto e comentado, e dos espaços onde é exposto, vai sendo desdobrado. O desenho-escrita
sobre papel não é uma tatuagem indelével, mas a prática, o exercício contínuo do
desenho, marcam os dias e, consequentemente, aquele que desenha. Mas de momento
repudio este aspecto.
É-me estranha esta vontade de escrever sobre o que faço. Para além de FB – a quem este
texto é dedicado -, tenho a sorte de ter, de tempos a tempos, bons interlocutores com quem
posso conversar sobre o trabalho, como o Jean-Marie Stroobants ou o Pedro Moura, e tive
quem se tivesse interessado em escrever sobre as exposições feitas, como o Claude Lorent,
e isso foi muito fértil. Ouvir e ler o que outros pensam e projectam sobre o nosso trabalho
inquieta-me, traz, geralmente, novas questões e amplia o mapa de referências.
E porque escrevo eu agora sobre o que faço?
Por ser uma outra forma de ginasticar este músculo vivo que pulsa, cabeça-coração, divagar,
desviando-me do que me é familiar, traçando novos trilhos adentro desta negra floração, ir
passo a traço a passo a X[8].
NOTAS
[1] Tinta-da-china, 30,5 cm x 45,5 cm (2019).
[2] escrever como caminhar (2019), título de uma publicação (250 exemplares) e de uma instalação concebida para “A Incontornável Tangibilidade do Livro – ou, o Anti-Livro”, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa.
[3] desenho, desejo (2020), Jornal A3, 150 exemplares, produzidos para “A mão que segura e a que se eleva no ar”, exposição com Mafalda Santos e Susana Gaudêncio, Rampa, Porto.
[4] Tinta-da-china, 30,5 cm x 45,5 cm (2019).
[5] Tinta-da-china, 30,5 cm x 45,5 cm (2019).
[6] oração (2020), Ed. Isabel Baraona, 50 exemplares.
[7] Tinta-da-china, 30,5 cm x 45,5 cm (2019).
[8] Tinta-da-china, 30,5 cm x 45,5 cm (2019).
tem participado em exposições individuais e colectivas, em Portugal e no estrangeiro. Está representada em colecções nacionais como a Fundação EDP, Fundação D. Luís I, MGFR (Fernando Ribeiro), Safira e Luís Serpa, Centro Português de Serigrafia; e em colecções internacionais como Yolande De Bontridder, Galila Barzilaï-Hollander, Jean-Marie Stroobants, entre outras. Lecciona na ESAD.CR desde 2003.